Monday, 13 September 2010

DE LEFEBVRE A HOYOS: O ESTADO DE NECESSIDADE DA IGREJA

De vez em quando alguém me pergunta o que acho da Fraternidade São Pedro, da Comissão Ecclesia Dei, e dos chamados tradicionalistas ligados à Roma. Se eles têm a missa de São Pio V e estão na obediência ao Papa, porque razão nós nos mantemos afastados de Roma? É possível manter a Tradição na Igreja oficial? Porque nós somos marginalizados pelo Vaticano e eles não?

Para responder a esta pergunta de modo adequado é preciso explicar, antes de tudo, como nasceu essa Fraternidade São Pedro, que é uma dissidência da Fraternidade São Pio X e que fez os acordos com Roma, em 1988. E para se compreender o que é a Fraternidade São Pedro, é preciso conhecer a história do famoso protocolo de acordo, assinado por Mgr. Lefebvre e pelo Cardeal Ratzinguer, em 5 de maio de 1988, e depois denunciado por Mgr. Lefebvre, no dia 6 de maio. A crise que assola hoje essa organização que traiu a confiança de Mgr. Lefebvre fora prevista pelo bispo de Ecône. O Vaticano começa a devorar sua presa.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

1ª Parte

O Protocolo de 1988

A história começa em 1987. Como todos os anos, a data de 29 de junho é aguardada com ansiedade por todos os fiéis da Tradição; é também aguardada por Roma, onde as autoridades do Vaticano se escondem atrás de uma pose de segurança, e que na verdade esconde um receio: eles sabem que Mgr. Lefebvre não fez nada de errado, que sua posição não é cismática, que ele é um bispo zeloso pela doutrina e pela salvação das almas. Não é à toa que em Roma, muitos bispos dizem ao pé do ouvido: Mgr. Lefebvre tem razão, é um santo bispo.

Nesse dia 29 de junho de 1987, na cerimônia das ordenações sacerdotais, realizada como todos os anos, sob a vasta tenda plástica que abriga 4.000 fiéis, deixando outros 6000 sob o forte sol de verão, Mgr. Lefebvre anuncia no sermão que não poderá mais esperar um sinal positivo de Roma, diante de seus inúmeros pedidos para sagrar bispos que o sucedam no árduo trabalho à frente da Fraternidade São Pio X. Roma não lhe dá ouvidos e Mgr. Lefebvre marca a Sagração Episcopal de quatro novos bispos para a Fraternidade São Pio X, para o dia 30 de junho do ano seguinte, 1988.

Qual o espírito dessa declaração? Haveria no prelado a intenção de se separar de Roma, de fundar uma outra Igreja, uma Igreja paralela? Um cisma? Não! Nada disso passa pela cabeça do ancião, do sábio bispo que tantos serviços já havia prestado à Igreja. E para provar, nada melhor do que ir aos documentos. Dois importantes documentos explicitam as intenções de Mgr. Lefebvre. Eles serão usados nas Sagrações do dia 30 de junho de 1988. Mas já então tinham sido redigidos, pois a necessidade das Sagrações já era antiga. Ei-los:

1- Declaração de Mgr. Lefebvre por ocasião das Sagrações de Ecône, 30/06/1988
2- Carta de Mgr. Lefebvre aos futuros bispos

De um modo geral, dentro dos círculos ligados ao combate pela Tradição Católica, todos estavam acostumados em ver Mgr. Lefebvre tomar as atitudes necessárias nos momentos oportunos. O que teria sido da Igreja se, em 1976, Mgr. Lefebvre tivesse aceitado o apelo do Papa Paulo VI para não realizar as ordenações sacerdotais de Ecône? Diante de grande insistência do Papa e de muitos prelados, o bispo ficou firme e fez aquilo que sempre fizera: ordenou sacerdotes para celebrar o santo sacrifício da Missa.

Dentro do Monastère Sainte Madeleine Dom Gerard Calvet não media palavras para elogiar a atitude de Mgr. Lefebvre. Chegou a fazer um famoso sermão em que alinhavara cinco razões para não temer as Sagrações.

O fato é que esta declaração feita em 29 de junho de 1987 provocou grande alvoroço em Roma. Mgr. Lefebvre, apesar do que disse no sermão, faz mais uma tentativa e escreve uma carta ao Cardeal Ratzinguer, datada de 8 de julho de 1987 e entregue pessoalmente ao Cardeal, no dia 11 seguinte. Além de conter uma análise sobre a desastrosa Declaração Dignitatis Humanae, sobre a Liberdade Religiosa, esta carta termina assim:

"A fim de travar a autodemolição da Igreja, suplicamos ao Santo Padre, por vosso intermédio, que conceda o livre exercício à Tradição, concedendo-lhe os meios para viver e se desenvolver para a salvação da Igreja Católica e salvação das almas; que sejam reconhecidas as obras da Tradição, em particular os seminários, e que Mons. de Castro Mayer e eu próprio possamos dotar-nos de auxiliares da nossa escolha para conservar à Igreja as graças da Tradição, única fonte de renovação da Igreja.

Eminência, depois de quase vinte anos de instantes pedidos para que seja encorajada e abençoada a experiência da Tradição, pedidos que ficaram sempre sem resposta, é sem dúvida o último apelo, perante Deus e perante a história da Igreja. O Santo Padre e vós próprio teríeis a responsabilidade de uma ruptura definitiva com o passado da Igreja e com o seu Magistério.

O Magistério de hoje da Igreja não se basta a si próprio, para se poder dizer católico, se ele não for a transmissão do depósito da Fé, quer dizer, da Tradição. Um Magistério novo, sem raízes no passado e, além do mais, contrário ao Magistério de sempre, só pode ser cismático, ou mesmo herético.

Uma vontade permanente de enfraquecimento da Tradição é uma vontade suicida, que autoriza, pelo próprio fato, os católicos verdadeiros e fiéis a tomarem todas as medidas necessárias à sobrevivência da Igreja e à salvação das almas.

Nossa Senhora de Fátima, tenho a certeza, abençoa este último apelo, no 70º aniversário das suas aparições e das suas mensagens. Praza a Deus que não fiqueis uma segunda vez surdos ao seu apelo.

Dignai-vos aceitar, Eminência, etc.

+ Marcel Lefebvre "

Salta aos olhos as santas intenções do bispo de Ecône. Em nenhum momento é posto em causa algum aspecto pessoal, ligado a alguma opinião própria do bispo. Só o que lhe interessa é a Doutrina bi-milenar da Igreja.

Essa carta provocou uma resposta do Cardeal Ratzinguer que abriu uma pequena possibilidade de Mgr. Lefebvre continuar sua obra e sagrar os bispos para prosseguir as ordenações. Damos à seguir esta carta, onde acrescentamos alguns comentários:

3 - Carta do Cardeal Ratzinguer a Mgr. Lefebvre - 28 de julho de 1987

Apesar dos reparos que assinalamos e outros que poderíamos ter assinalado, Mgr. Lefebvre viu nesta carta uma possibilidade de acordo. Eis o que ele próprio comenta numa conferência à Imprensa, em 15 de junho de 1988:

"Eu tinha, efetivamente, pedido uma visita canônica, para que nos conhecessem, pois não nos conheciam, não vinham ver-nos. Houve, pois, uma abertura de Roma nessa ocasião. Confesso que hesitei bastante. Devia aceitar essa abertura ou recusá-la? Tinha vontade de a recusar, porque não tenho confiança nenhuma nessas autoridades romanas – devo dizê-lo – pois que as suas idéias são totalmente opostas às nossas. Não estamos, em absoluto, no mesmo comprimento de onda. Não tinha, portanto, qualquer confiança.

Tínhamos sido sempre perseguidos. Era ainda a época de Port-Marly [em que uma igreja onde sempre se celebrou a Missa tradicional, foi brutalmente invadida pela polícia de choque, a mando do bispo de Versailles], da perseguição ao Pe. Lecareux [pelo arcebispo de Bourges], pelas suas paróquias, perseguição aprovada por Roma, pois os bispos eram aprovados por Roma. Tudo isso não nos inspirava confiança, para nos pormos nas mãos de Roma, de uma Roma que combatia a Tradição.

Quisemos, no entanto, fazer um esforço: vamos tentar..., vamos sondar quais as disposições de Roma a nosso respeito. Foi nesse espírito que fui a Roma e que, depois, recebemos a visita do Cardeal Gagnon. Parece que essa visita foi favorável. Confesso que dela nada sei, pois não recebi uma única palavra sobre o resultado dessa visita que teve lugar há sete meses."

Mgr. Lefebvre escreve, então, novamente ao Cardeal Ratzinguer esta carta que dará origem à famosa visita canônica, realizada tanto na Fraternidade São Pio X quanto em todas as demais obras tradicionais de vários países da Europa, pelo Cardeal Edouard Gagnon.

Posso testemunhar que o Cardeal só fazia exclamar sua admiração e surpresa com o que via, em todas as instituições que visitou: piedade, seriedade, alegria, muitas vocações, todos recebendo-o como um enviado do Papa. Algumas pessoas ouviram-no dizer: "Vocês estão salvando a Igreja!". Compreende-se porque seu relatório desapareceu como por encanto.

Eis a carta de Mgr. Lefebvre ao Cardeal Ratzinguer:
"+ Écone, 1 de outubro de 1987

Eminência,

Será a vossa carta de 28 de julho o prenúncio de uma solução?

Alguns indícios permitem-me esperá-lo:

- a ausência de uma declaração faz-nos pensar que somos finalmente reconhecidos como perfeitamente católicos;

- o contato prolongado com um Cardeal que nos visitaria responde aos nossos anseios tantas vezes expresso;

- a continuidade da Liturgia segundo os livros litúrgicos em vigor na Igreja em 1962 causa-nos uma profunda satisfação;

- o direito de prosseguir a formação dos seminaristas como atualmente fazemos, segundo as normas da S. Congregação dos Seminários, também é para nós uma garantia de perenidade de nossa Obra.
Para avançar na via de uma solução, parece-nos indispensável encontrar o Visitador, podendo ele vir a Ecône ou a Rickenbach, na Suiça, ou encontrando-o nós em Albano, para podermos estudar os meios concretos possíveis dessa solução definitiva.

Não podemos pôr em causa a nossa autoridade em relação aos seminaristas. Seria contrário ao direito que tencionais conceder-nos.

Devo estar em Albano de 16 a 20 de outubro. Ouso esperar que o desejo que acabo de exprimir já se possa realizar nessa data, para aclarar já o caminho.

É o P. Du Chalard quem vos levará esta carta. Poderia também comunicar-me a vossa resposta.

Agradeço-vos antecipadamente e peço-vos, Eminência, etc.
+ Marcel Lefebvre

P. S. Desejamos muito que o Cardeal-Visitador seja o Cardeal Gagnon. "
Podemos dizer que assim termina a primeira fase de toda essa história. Esse conjunto de documentos prova cabalmente que Mgr. Lefebvre nunca teve qualquer intenção de cisma dentro da Igreja. Releia, caro leitor, esta última carta. O bispo de Ecône em hora nenhuma fala de alguma dúvida sobre a legitimidade do Papa, sobre uma possível falta de autoridade em João Paulo II. Não existe esse problema para ele. O que o afeta e o obriga a defender a Fé, são os constantes ataques contra a verdadeira doutrina Católica, contra a Missa Católica, contra o Sacerdócio Católico. Esse é o seu combate, e o Cardeal Gagnon não deixará de notá-lo.

A seqüência de documentos do dossier trata da realização da primeira reunião em vistas a elaborar um protocolo de acordo. Esta primeira reunião foi realizada em Roma, em 13, 14 e 15 de Abril de 1988, contando com um moderador (Pe. Duroux) e um teólogo e um canonista de cada lado. Após quarenta e oito horas de debates foi elaborado um primeiro texto, mais doutrinário do que disciplinar, o que surpreendeu um pouco à Mgr. Lefebvre. Mas havia no texto elementos suficientes para que tentassem ir adiante; afinal de contas, pela primeira vez o Vaticano falava em permitir sem concessões a Missa de São Pio V, e mesmo aceitava que se criticasse Vaticano II.

Mgr. Lefebvre e o próprio Cardeal Ratzinguer participam, então, junto com os demais, de um novo encontro, nos dias 3 e 4 de Maio, onde fica elaborado o texto do protocolo de acordo. No dia 5 de Maio de 1988, Mgr. Lefebvre assina o protocolo. Eis o texto:

4- Protocolo de Acordo

Eis, assim, realizado um passo importante na história recente da Igreja, na crise de identidade que a assola desde Vaticano II. A Igreja é uma só, e é Revelada. Essa Revelação manifesta-se na Tradição divina, ou seja, as verdades ensinadas diretamente por Deus e que não foram escritas na Bíblia, e a própria Bíblia, que é a Revelação escrita. Esses dois elementos formam a fonte de nossa Fé. E é por causa do abandono dessa Tradição divina que Mgr. Lefebvre, assim como Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos (R.J.) e muitos padres espalhados pelo mundo, passaram a adotar uma posição crítica em relação ao que vinha do Vaticano.

Essa posição crítica foi aumentando na medida em que as autoridades romanas foram, inexplicavelmente, perseguindo todos aqueles que queriam manter-se fiéis à Tradição imutável da Igreja. Como pode, uma autoridade da Igreja não querer o que a Igreja sempre quis? Proibir o que a Igreja decretou como santo? Destruir todo o patrimônio espiritual da Igreja, legado dos Apóstolos e dos santos doutores? E além disso, aqueles mesmos que assim agiam, diziam querer repelir a Igreja do Concílio de Trento, criticavam a Igreja da Rocha, falavam na Igreja moderna e evolutiva; rechaçavam a Igreja que eles diziam ser fechada e sem caridade e pregavam uma nova Igreja, aberta ao mundo. E isso tudo não era apenas dito com palavras, eram idéias postas em prática em todas as paróquias do mundo católico. Um padre, um bispo que quisesse continuar católico, só podia opor-se a todo esse conjunto de erros e de atitudes destruidoras da Tradição da Igreja. A influência do Protestantismo tornava-se cada dia maior, e os dogmas foram sendo, um a um, derrubados, como se fossem passíveis de mudanças. As imagens arrancadas das igrejas; estas rapidamente transformaram-se em templos protestantes, sem nenhuma sacralidade. Nossa Senhora tratada como uma mulher qualquer; a Santa Missa já não exprimindo o Santo Sacrifício da Cruz, mas sendo definida e vivida como uma refeição presidida pelo padre, mas oficiada pela assembléia de fiéis; do batismo retirou-se o sal bento e os exorcismos, mudaram as formas da Crisma, da Extrema-Unção, da Ordem; a presença Real de Nosso Senhor na Sagrada Hóstia foi diminuída até tornar-se uma presença simbólica, bem ao estilo protestante. Mudaram o Catecismo, mudaram os sacramentos, mudaram a Missa, mudaram a Bíblia, mudaram a linguagem, mudaram as vestes sacerdotais, mudaram a língua litúrgica. Seria o caso de se perguntar: O que ficou de pé, depois da avalanche de Vaticano II? E a resposta é: nada! Os progressistas iam ao encontro das almas tradicionais sempre com duas pedras na mão: assim foram os dois legados do Papa, dois bispos belgas, que foram fazer uma visita canônica ao Seminário de Ecône, em 1974: espírito modernista, vingativos, negativos, rindo-se de tudo o que era católico em nome da Nova Igreja Conciliar.

Estou dizendo isso tudo para explicar porque Mgr. Lefebvre diz, na entrevista à imprensa que já citei acima, que ele aproximou-se das autoridades romanas mas sem deixar de desconfiar delas. Já tinha muitas experiências desagradáveis em relação a elas (cf. conferência de Mgr. Lefebvre sobre a mudança da Missa). Esta situação da vida da Igreja na época joga uma luz esclarecedora sobre a seqüência dos acontecimentos que narraremos a seguir.
Uma vez assinado o protocolo de acordo abriram-se as portas para uma solução rápida da situação da Fraternidade S. Pio X. Normalmente a boa vontade do Papa e do Cardeal Ratzinguer os levaria a deixar as coisas seguirem seu rumo. Mas não foi isso que aconteceu. Ouçamos Mgr. Lefebvre narrar, na Entrevista Coletiva já citada, de 15 de junho de 1988:

"O protocolo estava, pois, assinado. A imprensa anunciou: Acordo entre Mgr. Lefebvre e o Vaticano; parece que as coisas se arranjam, que tudo vai se arranjar.

Pessoalmente, como já vos disse, tinha pouca confiança. Sempre tive um sentimento de desconfiança e devo confessar que sempre pensei que tudo quanto eles faziam era para nos levar a submetermo-nos, a aceitarmos o Concílio e as reformas pós-conciliares. Não podem admitir – e, aliás, o Cardeal Ratzinguer disse-o recentemente, numa entrevista a um jornal alemão: “Não podemos aceitar que haja grupos, depois do Concílio, que não admitem o Concílio e as reformas que foram feitas depois do Concílio. Não podemos admitir isso.” O Cardeal Ratzinguer repetiu várias vezes: “Monsenhor, há uma só Igreja; não pode haver Igreja paralela.” Eu disse-lhe: “Eminência, não somos nós que fazemos uma Igreja paralela, porque nós continuamos com a Igreja de sempre. Os senhores é que fazem uma Igreja paralela ao inventar a Igreja do Concílio, essa que o Cardeal Benelli chamou a Igreja Conciliar. Os senhores fizeram novos catecismos, novos sacramentos, uma nova missa, uma nova liturgia, não somos nós. Nós continuamos o que anteriormente se fazia. Não somos nós que fazemos uma nova Igreja!”

Sempre sentimos, portanto, ao longo desses colóquios, um desejo, uma vontade deles nos submeterem ao Concílio.

Bem. Apesar de tudo, tentei mostrar boa vontade, mas, no dia em que decidimos assinar, perguntei ao Cardeal Ratzinguer, a propósito do bispo: “Agora que vamos assinar o protocolo, já podem indicar a data da consagração do bispo (estávamos a 4 de maio). Tem tempo até 30 de junho para me dar o mandato para o bispo. Eu próprio participei na apresentação de bispos quando era Delegado Apostólico – de trinta e sete bispos: sei como isso se faz...”

Já tinha apresentado os nomes, já estavam no Vaticano, três nomes, a chamada “terna”. É um termo clássico em Roma para designar os três nomes dos bispos que são propostos; e a Santa Sé escolhe entre esses três nomes. Dei, pois, três nomes. “Daqui até 30 de junho o senhor tem tempo de preparar, de fazer um inquérito e de me dar o mandato.”

“Ah! Não, não, é impossível! Para 30 de junho é impossível! – Então quando? Em 15 de agosto? No fim do Ano Mariano? – Ah! Não, não, Monsenhor! O senhor sabe que em 15 de agosto, em Roma, não há ninguém! De 15 de julho a 15 de setembro são as férias. Não se pode pensar em 15 de agosto, é impossível! – Digamos então o 1º de novembro, dia de Todos os Santos? – Ah! Não sei, não posso dizer. – Para o Natal? – Não posso dizer.”

Eu disse: já percebi... Estão brincando conosco... Pois bem, acabou-se! Já não tenho confiança. Eu tinha toda a razão em não ter confiança. Estão brincando conosco. Perdi completamente a confiança...

E no dia 6 de maio, escrevi uma carta ao Papa e uma ao Cardeal Ratzinguer, dizendo: “Tinha esperado chegar a um resultado, mas creio que já não é possível. Vê-se muito bem: há uma vontade, por parte da Santa Sé, de nos submeter às suas vontades e às suas orientações. Não vale a pena continuar. Estamos em completa oposição.”

Grande alvoroço em Roma, nessa altura, por causa da carta que escrevi. "

Quando este fato foi comunicado aos fiéis que acompanhavam, rezando, os colóquios com Roma, houve, sem dúvida, inquietação. É claro que havia em todos grande confiança na sabedoria de Mgr. Lefebvre, como também todos desejavam ardentemente que enfim, fosse aceita a Tradição, pelo menos como "opção" legítima. Não fora ainda dessa vez, mas passos importantes haviam sido dados.

No mosteiro do Barroux, ao contrário do que muitos pensam, Dom Gerard Calvet fez declarações à comunidade, assim como aos fiéis, de grande vigor de pensamento, elogiando a atitude de Mgr. Lefebvre. Lembro-me com perfeição de um momento crucial na vida daquele mosteiro, ocorrido no domingo 19 de junho de 1988. Dom Gérard celebrou a missa conventual, das 10:00 da manhã. Pedira-me que fosse ao parlatório assim que terminasse a missa, receber um jornalista famoso que mantinha um programa dominical numa rádio francesa, muito ouvido porque volta e meia tomava a defesa de Mgr. Lefebvre, apesar de não freqüentar a Missa Tradicional. Seu nome era François, mas não me recordo mais o sobrenome. Ao chegar ao parlatório, a esposa do jornalista mostrou-se muito aflita com a atitude de Mgr. Lefebvre, e eu, jovem sacerdote, meio sem graça, dizia que devíamos rezar, que a Providência mostraria o caminho a Mgr. Lefebvre, e coisas desse teor. Foi quando chegou Dom Gérard, tendo terminado sua "ação de graças". Ao entrar no parlatório fiz as apresentações e disse que eles estavam muito apreensivos. Dom Gérard num élan que chegava a ser bonito e tocante fez então a apologia da atitude de Mgr. Lefebvre. Vivendo há oito anos no contato direto com aquele monge, posso dizer com certeza que aquilo era sincero: "De jeito nenhum! madame, Mgr. Lefebvre está salvando a Igreja. Não tenham medo, vocês verão adiante" etc.

Foi quando, no meio da conversa, Dom Gérard foi chamado ao telefone.....Do outro lado da linha, Mgr. Perl, o secretário do Cardeal Mayer...... e então tudo desmoronou! O Cardeal Mayer, presidente da recém-fundada Comissão Ecclesia Dei, para tratar dos assuntos referentes aos fiéis da Tradição, queria vir ao Mosteiro propor o acordo que Mgr. Lefebvre havia recusado

No dia 20, segunda-feira, Dom Gérard reuniu na Sala Capitular, dez padres do mosteiro, para expor a situação e perguntar o que devia ser feito. Eu fui o único a dizer que devíamos gentilmente mandá-lo de volta a Roma!

Dia 21 de junho de 1988 as portas do Monastère Sainte Madeleine foram largamente abertas para a entrada triunfal do cardeal, que vinha em pele de cordeiro propor a destruição de uma comunidade formada em torno da obra de combate pela Tradição e que depunha as armas. A reunião com o Cardeal foi lamentável, começando com o Cardeal chorando. Repito: o Cardeal chorou lágrimas de crocodilo diante de onze monges atônitos e de um prelado sinistro chamado Camille Perl. Em seguida ele ofereceu o bolo envenenado: tudo o que queríamos do ponto de vista litúrgico e doutrinário, com uma única condição: romper com Mgr. Lefebvre.

Ora, em 1984 Dom Gérard recebera do Presidente da Federação Beneditina esta mesma proposta. Ele a recusara dizendo: "o senhor me pede para trair. Eu não sou um traidor!"

Hoje, quatro anos depois, Dom Gérard aceita trair a confiança e a amizade de um bispo que tudo fez para apoiá-lo, graças a quem a pequena comunidade de Bédoin subsistiu e cresceu, tornando-se uma das referências do combate pela Tradição católica na França.

Daí para a frente foi só a morte rápida da comunidade onde fiz meus votos monásticos para viver minha vida dentro de um catolicismo autêntico. Os padres da Fraternidade São Pio X mais escrupulosos e fracos passaram a freqüentar os corredores do Barroux, armando sua jogada triunfal: fundar uma nova sociedade de padres traidores do seu bispo. Cegos, ouvindo um canto de sereia enganador. Dom Gérard os aconselhava, e ia escondido armando sua jogada: fazer com que sua comunidade recebesse gota a gota as doses homeopáticas da virada, para que não houvesse reações contrárias. Nessa época, muitos irmãos e padres não queriam, de modo algum, afastarem-se de Mgr. Lefebvre. Mas a habilidade de Dom Gerard e a malícia do sub-Prior, certamente infiltrado dentro da comunidade para alcançar esse fim, foi virando as cabeças. Fui acompanhando enquanto pude, até que, em 26 de agosto fiz minhas malas e voltei ao Brasil, para ajudar Dom Tomás em Friburgo, a manter o Mosteiro da Santa Cruz.

Narro esses acontecimentos para mostrar o trabalho do demônio numa hora crucial como essa. Essa virada da cabeça do Prior do Barroux, na hora do telefonema do Cardeal Mayer, é muito significativa.

Em 30 de junho de 1988, na hora das Sagrações, os padres traidores se reuniam na Abadia de Hautrive, na Suíça, para fundar a Fraternidade São Pedro. Pretendiam eles manter a Tradição, porém na obediência à Roma. Pretendiam eles manter a missa de São Pio V e nunca celebrar a missa nova. Pretendiam eles poder criticar à vontade Vaticano II e seus erros. Pretendiam eles ter as portas abertas em todas as dioceses para se instalar à vontade. Pretendiam eles conseguir o que o "pobre coitado" do Mgr. Lefebvre, velhinho esclerosado, nunca conseguira, viver a Tradição de dentro da Roma modernista...

Coitados, quanta pretensão. A seqüência dessa história mostrará o que aconteceu com eles e como a Fraternidade São Pedro e todos os institutos que fizeram os acordos foram engolidos pela Roma modernista. Vamos ver como aconteceu.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

2ª Parte

Nem Cismático nem Excomungado

Quando Mgr. Lefebvre percebeu que o Vaticano tentava ganhar tempo e não lhe dava o mandato prometido para a sagração dos bispos, recuou e retirou sua assinatura do Protocolo de acordo, como vimos na 1ª parte. Diante dessa situação, escreveu ao Cardeal Ratzinguer mais uma vez, pedindo um posicionamento claro sobre as questões que o inquietavam:

Carta de Mgr. Lefebvre ao Cardeal Ratzinguer, 26 de maio de 1988
e resposta do Cardeal Ratzinguer, 30 de maio de 1988

A primeira impressão que se tem, ao ler esta resposta, é que poderia ter havido uma precipitação de Mgr. Lefebvre, visto que o Papa concedia um bispo para 15 de agosto, um mês e meio depois da data limite. Mas devemos considerar duas coisas: Mgr. Lefebvre já tinha entregue mais de uma lista ao Vaticano, com os nomes dos candidatos, porém todos sempre foram vetados. O próprio Cardeal fala na escolha de um candidato "que corresponda ao perfil desejado". Certamente o perfil desejado pelo Vaticano não coincidia muito com o perfil desejado por Mgr. Lefebvre. Além disso, o Vaticano se apresenta sempre como um pai bondoso recebendo de volta um filho pródigo! Como se Mgr. Lefebvre fosse, de fato, um rebelde, vindo em busca de perdão! Não é nada disso. Mgr. Lefebvre nunca foi rebelde, nunca fez nada pela Igreja de que tivesse que pedir perdão, sempre cumpriu fielmente a doutrina da Igreja e sua moral. Ele vinha como defensor da Fé esperançoso de encontrar em Roma um ambiente favorável ao restabelecimento da Tradição. Mas o que ele encontrou foi enganação e duplicidade.

Veja aqui o que o próprio Dom Lefebvre declarou sobre a interrupção das negociações

Poucos dias depois de receber a carta do Cardeal Ratzinguer, Mgr. Lefebvre escreveu ao Papa uma carta importante, que traça rapidamente os erros doutrinários que o afastam da Roma modernista e estabelece o critério do mandato que será usado em Ecône, no dia das sagrações: se o Vaticano aceitou a sagração em 15 de Agosto, é que existe uma vontade formal em permiti-la. O que nos impede de esperar esta data é a malicia e a duplicidade daqueles que permitem a sagração para melhor nos empurrar ao progressismo. Não é por espírito cismático que não esperamos até agosto. Logo esta vontade explicitada pelo Vaticano é suficiente para a realização das sagrações.

Carta de Mgr. Lefebvre ao Papa, 2 de junho de 1988
Resposta do Papa, 9 de junho de 1988

Nessa hora, o Papa evoca a obediência à Revelação Divina e aos 21 Concílios Ecumênicos, de Nicéia a Vaticano II. Por que razão, nos documentos emitidos tanto pelo Papa quanto pelas Congregações Romanas, só Vaticano II é que tem voz? Por que razão Cardeais se levantaram diversas vezes para dizer que Vaticano II é o anti-Syllabus, ou que a Igreja não segue mais os ensinamentos do Concílio de Trento? Como deve agir um católico que ouve tais ensinamentos, contrários a tudo o que a Igreja ensinou em dois mil anos de Magistério infalível? Fugiria dos limites desse trabalho apresentar a visão que o Papa tem da sua autoridade, seu modo democrático de governar, contrário à constituição monárquica da Igreja. Ele chama Mgr. Lefebvre para a unidade, mas para essa unidade do número, que congrega todos os bispos em torno de Vaticano II. Os textos do Vaticano estão aí para os que quiserem analisá-los.

A partir dessa carta, os documentos do Vaticano insistirão em que a atitude de Mgr. Lefebvre de sagrar os bispos em 30 de junho seria um ato cismático. Esse é, doravante, o nó da questão e já citamos na 1ª Parte dois importantes documentos onde Mgr. Lefebvre diz claramente que sua atitude não é cismática. O bispo de Ecône receberá uma advertência pública do Cardeal Gantin, prefeito da Congregação dos Bispos, datada de 17 de junho de 1988, ameaçando-o de excomunhão, caso proceda às sagrações "sem ter pedido o mandato ao Sumo Pontífice". Nós vimos que o que ele mais fez foi pedir o mandato, o qual foi sempre adiado sem motivos. No dia das Sagrações, 30 de junho de 1988, Mgr. Lefebvre leu o seguinte mandato:

[No início da cerimônia da sagração episcopal, é pedido ao bispo que consagra que apresente o mandato, ou delegação da Santa Sé (cân. 953, CIC 1917), para proceder ao ato. Eis o mandato lido por Mons. Lefebvre em 30 de junho.]

- Tendes um mandato apostólico?

- Temos.

- Leiam-no.

“Esse mandato, temo-lo da Igreja Romana, sempre fiel à Santa Tradição que recebeu dos Apóstolos. Essa Santa Tradição é o depósito da Fé, que a Igreja nos manda transmitir fielmente a todos os homens, para a salvação das almas.
“Desde o Concílio Vaticano II até hoje, as autoridades da Igreja Romana estão animadas do espírito do modernismo; agiram contrariamente à Santa Tradição: “Já não suportarão a sã doutrina (...). Hão de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os a fábulas”, como diz S. Paulo na segunda epístola a Timóteo (IV, 3-5). É por isso que consideramos sem nenhum valor todas as sanções e todas as censuras dessas autoridades.
“Quanto a mim, quando “já me ofereci em sacrifício e já chegou o momento da minha partida”, ouço o apelo dessas almas que pedem que lhes seja dado o Pão de Vida que é Jesus Cristo. Tenho pena dessa multidão. Constitui, pois, para mim uma grave obrigação transmitir a graça do meu episcopado aos caros padres que aqui estão, para que possam, por sua vez, conferir a graça sacerdotal a outros clérigos, numerosos e santos, instruídos segundo as santas tradições da Igreja Católica.
“É em virtude desse mandato da Santa Igreja Romana, sempre fiel, que escolhemos para o Episcopado na Santa Igreja Romana os padres aqui presentes, como auxiliares da Fraternidade Sacerdotal São Pio X:

“P. Bernard Tissier de Mallerais,
“P. Richard Williamson,
“P. Alfonso de Galarreta,
“P. Bernard Fellay.”

Não é possível ler este curto texto sem sentir uma emoção diante da grandeza, da paz, da serena afirmação de um homem que tem uma grave responsabilidade diante de si e que a cumpre, malgrado a perseguição que isso lhe acarreta. Um pai, que se preocupa antes com a salvação dos seus filhos do que com as mensagens enganadoras que querem perverter a essência da família católica. E fica cada vez mais incompreensível a insensatez e a frieza desses dirigentes do Vaticano que ouvem palavras como essas e não param, não se perguntam onde foi que podem ter errado, para que um santo bispo lhes admoeste desse modo, com tanto fundamento e doutrina.

Ao contrário: da Roma modernista virá o tiro, o ataque iníquo, a tentativa de matar espiritualmente o bispo que lhes toca na ferida. Veremos adiante as razões da nulidade da excomunhão de Mgr. Lefebvre e de Dom Antônio de Castro Mayer. Cabe-nos, antes, publicar o texto da excomunhão:

DECRETO DE EXCOMUNHÃO DE Mgr. MARCEL LEFEBVRE,

DE DOM ANTÔNIO DE CASTRO MAYER

E DOS QUATRO BISPOS POR ELES SAGRADOS

Sagrada Congregação para os Bispos

Monsenhor Marcel Lefebvre, Arcebispo-Bispo emérito de Tulle, tendo – apesar da advertência canônica formal de 17 de junho último e das repetidas interpelações pedindo-lhe que renunciasse ao seu propósito – realizado um ato de natureza cismática ao proceder à consagração episcopal de quatro bispos sem mandato pontifício, e contra a vontade do Sumo Pontífice, incorreu na pena prevista pelo cânone 1364, par. 1, e pelo cânone 1382 do Código de Direito Canônico.

Declaro que os efeitos jurídicos são os seguintes: o sobredito Monsenhor Marcel Lefebvre, Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta incorreram ipso facto na excomunhão latae sentenciae reservada à Sé Apostólica.

Declaro ainda que Mons. Antônio de Castro Mayer, Bispo emérito de Campos, tendo participado diretamente na celebração litúrgica como co-consagrante e tendo publicamente aderido ao ato cismático, incorreu na excomunhão latae sentenciae, prevista pelo cânone 1364, par. 1.

Exortamos os padres e os fiéis a não aderirem ao cisma de Monsenhor Lefebvre, pois incorreriam ipso facto na mesma pena de excomunhão.

Da Congregação para os Bispos, dia 1 de julho do ano de 1988.

Bernadin Cardeal Gantin
Congregação para os Bispos , Prefeito

Assinalamos em negrito a razão de ser dessa excomunhão, no pensamento do Vaticano: um ato cismático. Vamos mostrar agora que este decreto é nulo pelo Direito Canônico do Papa João Paulo II, de 1983. Esse mesmo Direito que é evocado no decreto do Cardeal Gantin mostra claramente que o decreto não tem nenhuma validade.

Comecemos pela noção de cisma. O que é um cisma?

"Cisma é a separação voluntária e pertinaz do batizado da unidade da Igreja" (M.C. CoronataTomo II, col. 2298)

"Não basta uma desobediência, por mais obstinada que seja, para constituir um cisma; é necessário, além disso, uma revolta contra a função do Papa e da Igreja" (Cardeal Charles Journet, teólogo suiço, amigo de Paulo VI, L'Eglise du Verbe Incarné)

"Quando se desobedece ao superior em determinado caso, julgando-se, por exemplo, que ele se engana ou que age ilegitimamente; em outras palavras, quando se recusa a obedecer à pessoa, respeitando-se, no entanto, a função, não se configura o cisma, mas a desobediência. O cisma se verifica quando a recusa de obedecer atinge, na ordem recebida ou na decisão promulgada, a própria autoridade, reconhecida como real e competente" (Cajetano, citado em Dictionaire de Théologie Catholique (DTC), col. 1204)

"Os teólogos medievais, pelo menos os dos séculos XIV, XV e XVI, tiveram o cuidado de notar que o cisma é uma separação ilegítima da unidade da Igreja, pois, dizem eles, poderia haver uma separação legítima, como, por exemplo, se alguém recusasse a obediência ao Papa que ordenasse uma coisa má ou indevida" (Torquemada, Summa De Ecclesia, citado em DTC, col.1302)

Se tomarmos estas definições tiradas do ensinamento constante dos teólogos e aplicarmos a elas o que já sabemos sobre as intenções de Mgr. Marcel Lefebvre ao sagrar os quatro bispos, concluiremos que, de fato, não houve cisma. Porém, poderiam objetar que estou tirando esta conclusão por mim mesmo, sem levar em consideração o que dizem as autoridades da Igreja. Assim sendo, vamos ouvi-las:

"O ato de consagrar um bispo, sem autorização do Papa, não é, de si, um ato cismático" (logo não pode ser punido com excomunhão) (Cardeal Castillo Lara, presidente da Pontifícia Comissão para a Autêntica Interpretação do Código. In La Republica, 7/10/1988)

O Caso de Honolulu: uma capela da Fraternidade São Pio X recebeu do bispo de Honolulu a pena de excomunhão, por um decreto de 1º de maio de 1991. Cinco pessoas dessa capela recorreram a Roma. Em 28 de junho de 1993 o Cardeal Joseph Ratzinguer ordenou à Nunciatura Apostólica dos Estados Unidos que respondesse aos interessados.
"Depois de haver examinado o caso, com base no Direito Canônico, comunico que os atos referidos no decreto acima mencionado não são atos cismáticos formais, nos sentido estrito, e também não constituem pecado de cisma, e por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé afirma que o decreto de 1/5/1991 carece de fundamento e validade"

"...A situação dos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X é uma questão interna da Igreja Católica. A Fraternidade não é uma outra Igreja ou uma outra comunidade eclesial, no sentido usado pelo Diretório. Seguramente a Missa e os Sacramentos administrados pelos padres da Fraternidade são válidos. Os bispos são ilicitamente, mas validamente sagrados." (Cardeal Edwar Cassidy, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos: 3 de maio de 1994, resposta a uma carta)

"Mgr. Lefebvre não fez absolutamente nenhum cisma com as suas sagrações episcopais". (Professor Geringer, perito em Direito Canônico da Universidade de Munique)

A Tese do Padre Gerald Murray:
Em julho de 1995, a Universidade Gregoriana, de Roma, aprovou com nota máxima, a tese de doutorado em Direito Canônico do padre americano Gerald Murray. Título da tese: O Estatuto Canônico dos fiéis do Arcebispo Marcel Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X: estão eles excomungados como cismáticos?
O padre conclui: "cheguei à conclusão de que, canonicamente falando, Mgr. Marcel Lefebvre não é culpável de nenhum ato cismático... O exame das circunstâncias nas quais o arcebispo Lefebvre procedeu a sagrações episcopais à luz dos cânones 1321, 1323, 1324, suscita pelo menos uma dúvida significativa, senão uma certeza razoável contra a validade da declaração de excomunhão pronunciada pela Congregação dos Bispos. A declaração administrativa da Santa Sé parece ter deixado de levar em consideração o direito penal revisado do Código de Direito Canônico, especialmente no que diz respeito à mitigação ou isenção das penas latae sententiae. A malícia do arcebispo Lefebvre foi pressuposta. Suas convicções subjetivas sobre o estado de necessidade alegado foram pura e simplesmente omitidas por um comunicado não assinado, quando o Direito Canônico estipula que o fato de ter uma tal convicção e agir em conseqüência, mesmo estando enganado, preserva a pessoa de incorrer na pena latae sententiae.

Eis, então, as autoridades romanas, do Vaticano, afirmando diversas vezes que não houve cisma e não há excomunhão. Para aqueles que desejam aprofundar mais esta questão, publicamos um artigo do Professor Rudolf Kaschewsky, da revista alemã, Una Voce-Korrespondenz, de março-abril de 1988:

A Sagração Episcopal sem Mandato do Papa

Carta do Canonista Pe. de Graviers, enviada aos Cardeais de Paris e Lyon

Nessa altura das nossas reflexões, depois de termos visto que a atitude de Mgr. Lefebvre não foi cismática e que não houve excomunhão, e que o direito da Igreja distingue entre ato cismático e desobediência, podemos ir mais adiante e mostrar porque razão Mgr. Lefebvre estava em condições de não seguir as orientações do Papa, ou seja, de desobedecer.

Cabe lembrar que essa matéria é revestida hoje de uma característica própria: as pessoas ignoram tudo sobre a infalibilidade papal e ficam repetindo pelos cantos, com ares de heróis da fé, um raciocínio falso mas que agrada, principalmente porque resolve dois problemas ao mesmo tempo: dá ao ignorante a impressão de ser muito católico e, por outro lado, evita ter de aprofundar o debate. Pois se o Papa é infalível, para quê discutir; obedeçam e não chateiem.
É preciso, portanto, abandonar a superficialidade criada pelos inimigos da fé e analisar com a frieza necessária a doutrina católica sobre o poder do Papa, sobre nosso dever de obediência e sobre a necessidade extrema de se defender a verdadeira doutrina, mesmo contra a opinião de um papa.

O que a Santa Igreja nos ensina e declarou como dogma de Fé é que o Papa é infalível, sim, nas condições estabelecidas pelo Concílio Vaticano I, de 1870. [veja em breve o link para o decreto sobre a Infalibilidade Papal]

Mgr. Lefebvre nos deixou um texto, anterior às negociações de abril-maio 1988, onde explica com toda a mansidão e simplicidade a doutrina do "estado de necessidade", em que nos encontramos hoje.

Pode a obediência a Deus obrigar-nos a desobedecer ao Papa?

O Estado de Necessidade é uma realidade jurídica expressa no Código de Direito Canônico. Assim explica o Prof. Georg May, presidente do Seminário de Direito Canônico da Universidade de Mayence:

O Estado de Necessidade na Igreja

Desobedecer materialmente ao Papa não significa, portanto, de forma alguma, querer impor uma opinião própria, querer rebelar-se contra uma autoridade agindo dentro dos seus limites. A Fé vale mais do que a obediência cega, logo podemos estar, e estamos de fato, em condição de agir assim para guardar a fé, nosso mais importante dever.
Que a atitude de Mgr. Lefebvre, assim como a de Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos, Rio de Janeiro, sirvam para nós como exemplo de zelo pela doutrina infalível da Igreja. Que nós possamos compreender que, ao desobedecer ao Papa, Mgr. Lefebvre fazia a única coisa eficaz para proteger este mesmo papa. Protege-lo do erro, protege-lo dos inimigos da Santa Igreja que ainda hoje querem destruí-la transformando-a num "clube" de filantropia e pesquisas religiosas.

Na próxima parte vamos analisar a atitude e a atualidade dos dissidentes, dos que trairam Mgr. Lefebvre e que hoje encontram-se cercados de todos os lados: ou aceitam a missa nova e continuam "de acordo" com o Vaticano, ou recusam a missa nova e são expulsos da agremiação vaticana.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

3ª Parte

A Fraternidade São Pedro engolida pelo Vaticano

Para preparar esta terceira parte, pus-me a reler o dossiê sobre as Sagrações de 1988. E fui como que revendo "em filme" todos os dolorosos acontecimentos que rasgaram ao meio a milagrosa obra de sobrevivência da Tradição dentro da Igreja. Não é nosso objetivo falar sobre todas as pessoas que me escreveram, todos os testemunhos da dor, da confusão, causada por pessoas como Dom Gérard Calvet, Prior do Monastère Sainte Madeleine, que já citei acima. Quantas famílias dilaceradas, com filhos permanecendo fiéis ao combate de Mgr. Lefebvre e filhos aderindo ao acordo com o Vaticano. Quantas almas boas e simples se sentiram traídas por estes padres que mudaram o seu discurso e traíram a confiança de seus fiéis. Um dia, talvez, eu lhes faça esta homenagem, de publicar alguma coisa desses documentos marcados pelo sangue de um martírio gota a gota.

Digo isso para introduzir esta terceira parte, que pretende apresentar a Fraternidade S. Pedro, sua origem e sua destruição que ora se opera.

Os chamados católicos "Ecclesia Dei", ou seja, aqueles que celebram ou assistem a Santa Missa nas associações regidas pelo Motu Próprio de mesmo nome, de 2 de julho de 1988, têm na Fraternidade São Pedro seu representante de maior peso. Esta Fraternidade foi formada em 30 de junho de 1988, no dia mesmo da Sagração Episcopal de Ecône, e durante as Sagrações, visto que Dom Gérard Calvet teve de deixar a cerimônia de Ecône na metade, para ir se encontrar com os padres traidores, na abadia de Hautrive.

O que marca esta fundação, assim como o acordo firmado com o mosteiro do Barroux, é a ilusão dos signatários de que não havia e não haveria contrapartida doutrinária. Ou seja, eles continuariam a celebrar a Missa de São Pio V, eles não teriam obrigação de celebrar a Missa de Paulo VI, eles poderiam pregar contra os erros de Vaticano II. Enfim, tudo como antes... Quando eu ainda estava no mosteiro do Barroux, Dom Gérard me passou um bilhete onde dizia: "Não se preocupe, Dom Lourenço, com a malícia de nossos adversários, pois a finis operis aniquilará a detestável finis operantis dos prelados conciliares". A finalidade do acordo (finis operis) aniquilaria a má intenção (finis operantis) dos prelados do Vaticano que assinavam o acordo. Uma verdadeira brincadeira com a Fé. Uma experiência em laboratório com o que há de mais precioso para nossa salvação. E foi assim que o Prior do Barroux aconselhou e ajudou aos padres da Fraternidade São Pio X a abandonarem a Mgr. Lefebvre. Não foi preciso muito tempo para Dom Gérard dizer que os prelados de Roma eram paternais e bem intencionados. Pouco depois ele concelebrava com o Papa numa Missa de Paulo VI.

Rapidamente as convicções doutrinárias desses padres mudaram de eixo. Antes de mostrar como isso aconteceu, gostaria de trazer alguns exemplos anteriores, onde seminários e associações oficiais e conservadoras foram pouco a pouco obrigadas a abraçar Vaticano II e a Missa Nova.

- Os Beneditinos de Dom Augustin, em Flavigny, França. Mgr. Lefebvre ordenou sacerdote seus 24 padres. Todos os anos nós os víamos em Ecône. Um dia, creio que em 1985 ou 1986, Dom Augustin fez um acordo com Roma. Prometeram a ele a manutenção de tudo. E ele afastou-se de Mgr. Lefebvre. Em pouco tempo Roma exigiu que a missa conventual (missa assistida por todos os monges) fosse a de Paulo VI. Alguns padres abandonaram, então, o mosteiro.

- Os Beneditinos de Fontgombault, França. Fundação da famosa Abadia de Solesmes, Fontgombault sempre teve uma posição de simpatia pela Tradição. Apesar de seu abade ter afirmado a Dom Gérard que nunca abandonaria a Missa de S. Pio V, não agüentou as pressões de Roma e aderiu à Missa de Paulo VI. Em 1984, João Paulo II concedeu um "indulto". Todos os que aceitavam a Missa Nova, podiam pedir para celebrar a Missa Tradicional (S. Pio V). O abade assim fez. Mas o arcebispo de Bourges não aceitou que a missa conventual fosse de S. Pio V. O abade de Fontgombault tentou reagir, foi a Roma. O Cardeal Mayer não pode fazer nada, enviou-o ao Papa. Este se esquivou, disse que fizesse um esforço... devolveu-o ao Cardeal Mayer, que o devolveu ao bispo de Bourges.... e eles continuaram a celebrar a Missa Nova.

Essa atitude das autoridades continua em voga no Vaticano, como mostra a resposta do Cardeal Ratzinguer ao Pe. Louis Demornex, que deixou de celebrar a Missa de Paulo VI e voltou à Missa de S. Pio V. (cf. Cartas)

"Tudo o que você diz sobre a secularização dos padres, sobre a anarquia
litúrgica e sobre as muitas profanações da Eucaristia, infelizmente é
verdade. Você confiou ao seu Bispo todo o seu profundo desconforto: ele não
compreendeu e convidou-o a deixar sua paróquia. Do ponto de vista formal e
jurídico é o direito dele. Você sabe bem- conclui o Cardeal- que eu não
posso aconselhar-lhe a se rebelar...Esteja certo de que o Senhor nunca impõe
o peso da cruz sem ajudar-lhe a carregá-la. Eu prometo que me lembrarei de
sua dor em minhas orações diante do Senhor". (Fonte: Il Giornale, 18/01/2001)

Eis em que consiste a moral do Prefeito para a Doutrina da Fé. O erro tem direitos!

- O Seminário Mater Ecclesiae. Mgr. Lefebvre viveu de perto esta experiência realizada pelo Vaticano com nove seminaristas saídos de Ecône. Ele conta numa entrevista coletiva, de 15 de Junho de 1988:

"Ouviram falar, sem dúvida – e publicaram alguns artigos nos jornais, há dois anos – do caso dos saídos de Ecône. Tinham partido daqui, de Ecône, nove seminaristas. Aquele que era, de certo modo, o cabeça dessa pequena rebelião, o P. ..., escondia bem o seu jogo e conseguiu que outros oito seminaristas deixassem Ecône. Entrou em contato com o P. Grégoire Billot, que vive aqui na Suiça, em Baden. Esse P. Billot fez, por sua vez, contato com o Cardeal Ratzinger. Ele fala alemão. Telefonou ao Cardeal: “Há em Ecône nove seminaristas que estão prontos para partir. O que é que lhes ofereceis? O que é que se pode fazer com eles?”

Formidável! Uma oportunidade única! Se lhes prometerem maravilhas, haverá outros que os seguirão... Ele disse-o explicitamente. O Cardeal Ratzinger disse: “Estou feliz por alguns terem deixado Ecône e espero bem que haja outros que sigam os primeiros.”

Como bem sabeis, fizeram o famoso seminário “Mater Ecclesiae”, dirigido por um cardeal, o Cardeal Innocenti, com o Cardeal Garrone e um terceiro cardeal, o Cardeal Ratzinger, aprovado oficialmente pelo Papa no “Osservatore Romano”. Um acontecimento mundial! Todos os jornais do mundo falaram desse seminário tradicional feito com os noves fugidos de Ecône e que também iria reunir outros seminaristas que tivessem a mesma “sensibilidade”.

Eles partiram e, ao todo, lá se encontraram cerca de vinte seminaristas.

Garanto que vale a pena ler a carta que acaba de nos enviar o P. ..., que foi o instigador da saída daqueles seminaristas. Ele escreveu: “LAMENTO”, em letras garrafais na sua carta. “LAMENTO, perdemos tudo, não cumpriram nenhuma das promessas. Somos uns miseráveis; já nem mesmo sabemos onde ir”
Mas a documentação sobre esta enganação não fica nisso. O Cardeal Silvio Oddi, em entrevista à revista Valeurs Actuelles, de agosto de 1988, declara ao jornalista Michel de Jaeghere:

"Segui de perto a primeira tentativa, há cerca de doze anos, pois os estudantes estavam instalados na Via Pompeo Magno, no colégio onde moro.
“Devo dizer que ela fracassou, porque não respeitaram os compromissos que tinham assumido para com os seminaristas. Tinham prometido à dezena de saídos de Ecône, que aí foram acolhidos, que poderiam prosseguir em Roma, no espírito da Tradição, a sua formação sacerdotal.
“Na realidade propuseram-se apenas “desintoxicá-los”, antes de lhes dizerem que, se quisessem continuar os seus estudos, deviam encontrar eles próprios um bispo que os aceitasse no seu seminário... "

- O Instituto Cristo-Rei. Dirigido pelo Pe. Wach, este instituto possui um seminário em Gricigliano, perto de Florença, sendo considerado refúgio de seminaristas de tendência tradicional. Na verdade, o espírito de Vaticano II é o fundamento desta obra, como aparece nos seus estatutos, que declaram que a formação dos seminaristas segue a doutrina de Lumen Gentium. O Pe. Wach também já concelebrou com o papa no rito novo.

- Instituto do Verbo Encarnado (Argentina). Um padre da Argentina acaba de me informar que este instituto, com mais de cem seminaristas, foi fechado por Roma, mandando os seminaristas de volta para casa.

A Fraternidade São Pedro foi então fundada mediante um acordo enganador. Eles prometem toda a liberdade para se viver na Tradição, mas suas intenções são muito claras: eles não pensam em outra coisa senão trazer os fiéis de "sensibilidade" tradicional, a aceitar o Concílio, seu ecumenismo, sua missa.

"Eu espero dos tradicionalistas recuperados que eles façam um esforço de leitura e compreensão do concílio a fim de que eles possam também assimilá-lo. Que eles trabalhem particularmente a questão da liberdade religiosa ou do diálogo com as outras religiões... Gostaria que os padres da Fraternidade São Pedro tenham a autorização de celebrar nos dois ritos... e que os seminaristas sejam preparados para celebrar no rito de Paulo VI." (Mgr. Decourtray, arcebispo de Lyon, França, para a revista France Catholique, 25 de junho 1993)

"Eu só poderia aceitar que se celebre no rito de Pio V nas condições pedidas no Motu Proprio, a saber, que os que a pedem abracem profundamente o Concílio Vaticano II. (Mgr. de Garnier, bispo de Luçon, conferência em 18 de agosto de 1992)

O próprio Papa João Paulo II fez a mesma colocação, no discurso feito aos membros da Fraternidade São Pedro, vindos a Roma em 26 de outubro de 1998, celebrar o décimo aniversário de sua fundação:

"Sem deixar de confirmar a razão de ser da reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II e posta em execução pelo Papa Paulo VI, a Igreja dá também um sinal de compreensão às pessoas "ligadas a certas formas litúrgicas e disciplinares anteriores". É nessa perspectiva que se deve ler e aplicar o Motu Proprio Ecclesia Dei; eu desejo que tudo seja vivido no espírito do Concílio Vaticano II, na plena harmonia com a Tradição, buscando a unidade na caridade, e a fidelidade à verdade."

Se o espírito do Vaticano II é diferente do espírito do Concílio de Trento, no dizer de tantos bispos atuais, então, para o papa João Paulo II, a Tradição e a verdade são evolutivas. Não é esse o ensinamento da Igreja. Além disso, aparece claramente a afirmação de que a reforma litúrgica foi boa, o que sabemos não ser verdade, pois que introduziu uma liturgia centralizada no homem e para o homem. Os padres da Fraternidade São Pedro deverão seguir este espírito novo e não deixarão de declarar isso com todas as letras.

Abraçaram tão profundamente o novo espírito conciliar que ensinam, contra a razão e contra Paulo VI, que o Concílio declarou novos dogmas. Os superiores da Fraternidade São Pedro passam também a apoiar o escândalo de Assis, quando João Paulo II reuniu representantes de todas as religiões para rezar pela paz, permitindo até mesmo que uma imagem de Buda fosse colocada sobre um sacrário! E o Pe. Baumann declara não ver nada de mais em Assis! Como se as falsas religiões, sem Revelação e sem a vida da graça pudessem fazer oração no sentido sobrenatural do termo. Existe uma encíclica solene, do Papa Pio XI, que condena e proíbe toda reunião de católicos com outras religiões. Esse inconveniente maior, essa desobediência a um papa anterior, é descartada cinicamente pela afirmação de que esta encíclica, Mortalium Animos, não continha princípios intangíveis. Releiam esse texto de Pio XI, carregado de um zelo e de um amor pelas almas e pela Igreja e respondam, leitores, se ela só servia para as pessoas daquela época, como pretende o Pe. Baumann. E para que estes padres sejam honestos, eles deveriam medir o valor das encíclicas de João Paulo II com os mesmos critérios das antigas. Poderíamos então dizer que os documentos do Concílio, ou as encíclicas dos papas mais recentes, também só valiam para a época em que foram escritas. Se em 1962 uma encíclica de 1931 deveria ser descartada, então hoje, em 2001, os documentos de 1962 também já caducaram. Mas aí vem o coro: não toquem no Concílio! O Concílio é intangível!

Para mim isso se chama desonestidade.

Apesar desse abandono do combate contra os erros de Vaticano II, a Fraternidade São Pedro ficará à mercê dos bispos diocesanos, como afirma o papa João Paulo II e como vimos acima na reação dos bispos e até do Cardeal Ratzinguer. Essa dependência da aprovação do bispo diocesano vai deixar o apostolado desses padres "conservadores" amarrado e amordaçado. O Monastère Sainte Madeleine, por exemplo, tentou duas vezes fazer uma fundação, sendo rechaçados pelos bispos locais.

Apesar de tudo, durante os dez primeiros anos de existência, a Fraternidade São Pedro manteve mais ou menos as intenções iniciais, de celebração da missa de São Pio V, e de exclusão da missa de Paulo VI. O Pe. Bisig, superior Geral escolhido na fundação, conseguia manter as aparências de apego à Tradição, apesar dos ensinamentos a favor de Vaticano II que citamos acima. Mas o Vaticano considerou que a coisa estava demorando demais. E resolveu atacar.

A Fraternidade São Pedro fez este acordo com o Vaticano, como nós vimos, achando que teria para sempre o direito de celebrar a Missa de S. Pio V e de nunca precisar celebrar a nova Missa. Evidentemente o Vaticano ficou quieto, na época, sem afirmar que as intenções eram de trazer estes padres a celebração da missa nova. Com o passar dos anos, alguns padres da Fraternidade São Pedro, começaram a pretender celebrar a missa de Paulo VI. Os superiores não queriam permitir. Houve, então, em fevereiro de 2000, uma reunião dos padres da Fraternidade, onde ficou decidido que os estatutos da Fraternidade davam aos padres o direito de recusar a celebração no rito de Paulo VI, apesar de reconhecer que este rito é o rito oficial vigente na Igreja latina. Essa decisão foi mal recebida por vários padres mais liberais que queriam poder celebrar a nova missa. Dessa situação controversa nascerá a morte da Fraternidade S. Pedro.

A destruição da Fraternidade São Pedro iniciou-se antes do Capítulo Geral, quando um dos padres dessa Fraternidade escreveu a um bispo, em Roma, reclamando do espírito conservador demais da Fraternidade (segundo sua opinião) e propondo ao Vaticano intervir e decapitar o superior geral. Essa atitude de revolta contra os seus superiores, evidentemente, é vista como ato heróico de virtude, e nessa hora a tal "obediência" fica de lado. Esse escândalo e essa traição foram recebidas em Roma com toda atenção, a tal ponto que o Vaticano seguirá todos os conselhos desse padre, como veremos adiante.

Eis os conselhos que o Pe. Le Pivain escreve em sua carta:

- "Explicar ao Pe. Bisig (o superior), que seria bom que ele se retirasse voluntariamente, após dois mandatos de seis anos... um outro governo daria à nossa Fraternidade um novo começo.
- Prevenir as decisões do próximo Capítulo, que não terá a serenidade necessária para tomar as decisões justas. (ele propõe uma intervenção)
- Reformar o seminário.
- Entre os superiores, o Pe. Devillers me parece a pessoa mais apropriada. Europeu, ele desenvolveu a Fraternidade S. Pedro nos EUA, tendo, por isso, conhecimento completo da nossa sociedade. (...)
Assim vos pedimos humildemente de agir com urgência junto à Comissão Ecclesia Dei. Estamos todos precisando, inclusive os fiéis, de que decisões sejam tomadas."

Essa carta foi acompanhada de uma carta do bispo de Versalhes, Mgr. Jean Charles Thomas, ao núncio de Paris, Mgr. Baldelli, datada de 27 de junho de 2000. Nesta carta Mgr. Thomas dá seu total apoio às declarações do Pe. Le Pivain e afirma que, se as decisões não forem tomadas, ele não aceitará mais os padres da Fraternidade S. Pedro em sua diocese.

Em 29 de junho de 2000, o Cardeal Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, intervém dentro da Fraternidade São Pedro, por uma carta enviada à reunião do Capítulo Geral, que votara a reeleição do Pe. Bisig como superior geral. Cito alguns extratos dessa carta decisiva:

"Esta reunião (de fevereiro), os senhores sabem, elaborou um compromisso que tentava conciliar as exigências do direito comum da Igreja com o caráter particular do vosso Instituto, evitando assim as divisões. [trata-se do compromisso dos padres de não aceitar celebrar a missa nova]. Esse compromisso, infelizmente, foi objeto de novas controvérsias, entre os que o aceitam e os que o rejeitam. Apesar disso, os superiores pediram à Comissão papal que aprovasse este compromisso, fazendo dele uma regra excepcional. Após amadurecida reflexão e consulta aos peritos, declaro que isto não é possível. A causa é a clara posição do aspecto jurídico, nessas circunstâncias: um padre que goza do privilégio de celebrar a Missa segundo o antigo missal de 1962 não perde o direito de utilizar o missal de 1970, que é oficialmente em vigor na Igreja latina."

Mais uma vez eles desviam o debate do aspecto doutrinário para o aspecto jurídico, como vimos fazer, acima, o Cardeal Ratzinguer, contra o Pe. Louis Demornex. É curioso que uma bula de valor tão forte, juridicamente falando, Quo Primo Tempore, assinada por São Pio V e nunca revogada, não tenha recebido das autoridades, o mesmo tratamento. Ao impor a Missa Nova e tentar fazer crer que a Missa de São Pio V estava proibida, as autoridades passaram por cima das determinações solenes e jurídicas do Concílio de Trento. Dois pesos e duas medidas.

A carta do Cardeal Hoyos continua determinando que, doravante, os superiores da Fraternidade só poderão exercer esta função em dois mandatos de seis anos. Agradece ao Pe. Bisig e se despede dele.
Em seguida determina, sem voto do Capítulo, ou seja, enquanto interventor, que o novo superior geral será o Pe......Devillers, como propusera na sua carta, o Pe. Le Pivain. Do mesmo modo destitui os superiores dos dois seminários e pede que o novo superior geral escolha outros.

Em seguida o Cardeal Presidente da Comissão Ecclesia Dei lembra a todos que o rito oficial da Igreja é o rito de Paulo VI, que o rito de S. Pio V é uma concessão, um privilégio desse instituto, mas que todos os padres podem celebrar quando quiserem a Nova Missa. Hora nenhuma este Cardeal ou qualquer outro bispo da hierarquia aceita analisar teologicamente o rito da Missa. É sempre o aspecto jurídico que eles levantam. É assim que sua carta termina clamando os membros da Fraternidade São Pedro a não se prenderem a uma questão de rito, pois, diz ele, o que importa "é a unidade na verdadeira fé e a disciplina comum sob a hierarquia apostólica". Ora, a quem o Cardeal quer enganar? Falar de unidade na fé e obediência à disciplina só caberia se ele provasse que o rito de Paulo VI exprime essa fé verdadeira. Isso ele não aceita fazer. Ele foge do mérito da questão, ele tem medo da verdade e quer nos fazer engolir Vaticano II e sua nova Igreja evolutiva, na base da ameaça jurídica.

E conclui: "Vosso papel não é de modificar esta situação, ou de falar desse rito como se fosse de menor valor, mas de ajudar aos fiéis que têm um apego ao antigo rito a melhor se encontrar dentro da Igreja... Os senhores não devem dar prioridade à forma litúrgica na qual têm o privilégio de celebrar.

Eis, então, que Mgr. Lefebvre tinha toda razão, quando retirou sua assinatura do protocolo de 5 de maio de 1988. Ele viu, ele sentiu, que as autoridades estavam muito longe de querer compreender a situação e favorecer a Tradição. O que eles queriam era isso, que hoje eles exigem desses padres. Estes queriam preservar a Tradição na obediência, queriam só celebrar a Missa de S. Pio V, na obediência, queriam criticar Vaticano II, na obediência. As autoridades foram fechando o cerco e deram o bote. E foram engolidos pelo Vaticano dessa nova igreja conciliar, protestantizada. Devorados pela fera, sem piedade nem dó. O exemplo da Fraternidade São Pedro está aí. O cadáver ainda quente nos deixa perplexos diante de tanta maldade, de tanta malícia. A cada um de nós de aprender com estes fatos. Não são invenções, não são interpretações malévolas e radicais. São os fatos, na sua mais clara e límpida objetividade.

Ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris, Te rogamus audi nos
Que vos digneis humilhar os inimigos da Santa Igreja - Vos rogamos, ouvi-nos.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

4ª Parte

Novas Negociações com a Fraternidade São Pio X - O Vaticano vai à Caça
" La corruption de la sainte messe continue à corrompre le sacerdoce catholique – A corrupção da Santa Missa continua a corromper o sacerdócio católico" (Mgr. Marcel Lefebvre)

" Je ne suis qu'un évêque catholique qui ai transmis la foi, et sur mon tombeau sera gravée cette parole : J'ai transmis ce que j'avais reçu – Nada mais sou do que um bispo católico que transmitiu a fé, e no meu túmulo será gravada esta palavra: 'Transmiti o que recebi'." (Mgr. Marcel Lefebvre)

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Quando comecei este trabalho, tinha a intenção de apresentar aos leitores os acontecimentos no seio da Fraternidade São Pedro. Como sabia que a maioria das pessoas, aqui no Brasil, ignorava o que era essa Fraternidade, achei por bem descrever as circunstâncias da sua fundação, o que foi feito nas duas primeiras partes. Só na terceira parte é que tratei da intervenção do Vaticano na Fraternidade São Pedro. Considerava completo o trabalho e atingido seu objetivo.

Qual não foi minha surpresa ao ver um novo capítulo surgir como por encanto, devido à iniciativa do Papa João Paulo II de chamar a Fraternidade São Pio X para novas negociações.

Primeiros contatos

O fato deveu-se, aparentemente, ao grande sucesso que foi a peregrinação do Ano Santo, realizada pela Fraternidade São Pio X em Roma, em agosto de 2000, quando sete mil fiéis da Tradição, vindos do mundo inteiro, reuniram-se naquela cidade para rezar pelo Papa. As fotos mostrando os mais de setecentos padres, religiosos e religiosas, junto a tantos fiéis, impressionam. Da parte do Vaticano a surpresa foi grande: «Uma das peregrinações mais edificantes que vi neste Ano Santo», dirá Mons. Tavanti, responsável pela liturgia da Basílica Santa Maria Maior. Ouviram-se também, nos corredores do Vaticano, os comentários elogiosos a estes curiosos "cismáticos" que vinham rezar pelo Papa. Nunca se tinha visto nada parecido. Outro fato inusitado foi que as autoridades organizadoras do Ano Santo receberam instrução para abrir as basílicas aos peregrinos da Tradição. Foi assim que assistiu-se a muitos prelados do Vaticano, de joelhos, pedir a bênção a Dom Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade São Pio X, e aos demais bispos presentes. E dentro das basílicas estes bispos e padres puderam pregar e rezar, durante três dias, num clima de muita piedade, oração e caridade fraterna. Não houve missas dentro das basílicas, mas já foi um grande passo. Leia aqui uma descrição detalhada da Peregrinação.

Na verdade, o Cardeal Castrillón Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, já havia demonstrado interesse em se encontrar com o superior da Fraternidade São Pio X. É Mons. Williamson, um dos quatro bispos da Fraternidade, quem nos conta o primeiro encontro.

"... Aproveitando a oportunidade da nossa passagem por Roma, ele nos convidou para almoçarmos juntos.
Três de nós aceitaram o convite. Ele foi muito cortês e hospitaleiro, deu-nos as boas-vindas e, depois de duas horas de almoço, abraçou-nos na despedida, dizendo: 'Voltem e visitem-me mais vezes'. E pensar que esse mesmo Cardeal, poucas semanas antes, havia tomado uma firme posição no sentido de podar a Tradição dentro da Fraternidade São Pedro, ao substituir quatro de seus líderes (eleitos pela própria Fraternidade) por outros, escolhidos diretamente por Roma! Ele esmaga os que convida, e convida os que esmaga. 'Durma-se com um barulho desses', dizem os americanos! "

Nesse primeiro encontro, o Cardeal Hoyos já havia recebido a missão do Papa de tentar negociar com a Fraternidade São Pio X um acordo. É significativo o fato de esse cardeal não ter recebido essa missão como Presidente da Ecclesia Dei, mas sim como Prefeito da Congregação do Clero. Os bispos da Fraternidade São Pio X são recebidos como membros do clero.

Depois desse encontro, correu a notícia do início das negociações. Houve, entre os fiéis e os padres ligados à Fraternidade São Pio X, como é natural numa situação como essa, sentimentos diversos: enquanto alguns viam com otimismo as negociações, outros confessavam seus temores. Mas todos concordaram que tanto o Papa quanto os Cardeais continuavam a ensinar uma doutrina e uma vida contrárias à Tradição Católica, como viria a ser confirmado em viagens posteriores do Papa, por exemplo, nas viagens à Grécia e à Síria. Por outro lado, o próprio Papa pedira essas negociações, e a inclinação do coração católico é a de atender a um chamado do Papa. Mgr. Williamson continua seu comentário:

Haveria falta de sinceridade? Humanamente julgando, não creio. Acho apenas que ele pertence à nova religião. 'Nós temos a mesma Santíssima Trindade, a mesma Encarnação, a mesma Eucaristia', disse ele, e certamente acredita na Presença Real, porque ele mesmo declarou que, quando os 'especialistas' começam uma disputa a esse respeito, ele rapidamente fecha a questão. 'Eu sou nice [educado], e vocês também são nice people [pessoas educadas]' — é o que ele parecia querer dizer-nos — 'então, onde é que está o problema? Por que não nos unimos numa espécie de religião do tipo e todos foram felizes para sempre?' No que diz respeito à Fraternidade São Pedro, ele admitiu que, por ora, agira contra a sua vontade, mas apenas para evitar que no futuro ele fosse obrigado a agir ainda mais 'contra a sua vontade'. Em outras palavras, a Fraternidade São Pedro tinha de ser paralisada em sua tentativa de escapar do esquema 'felizes para sempre', enquanto nós deveríamos ser atraídos por uma nova política — a de serem o mais simpáticos possível conosco. O que nos impede de voltar à doce e inocente religião de 'milhões' de jovens inocentes de mãos dadas cantando pelas ruas? E, já que essa é a religião do Santo Padre (a quem o Cardeal venera e freqüentemente visita) e da 'mesma' Santa Eucaristia, então o que mais pode haver na Tradição para que esses 'tradicionalistas' continuem fazendo todo esse barulho? Eu creio que realmente o Cardeal não consegue enxergar o problema.

Por esse motivo eu, humanamente, estou certo de que o Cardeal Castrillón Hoyos não é um dos verdadeiros vilões de Roma, ou seja, dos que realmente podem ver e sabem exatamente o que estão fazendo: demolindo a Igreja Católica para substituí-la pela satânica 'Única Religião Mundial'. Na verdade, não é necessário que haja muitos vilões como tais, mas homens valorosos que ainda acreditam na Presença Real e que se deixam manipular como meros instrumentos em suas mãos. Se o Cardeal realmente é nice, um dia terá de ser nasty [grosseiro]... com aqueles que o manipulam ou conosco. Guerra é guerra."

O critério de avaliação de uma situação tão delicada, no entanto, já havia sido formulado por Mons. Marcel Lefebvre, como já ficou dito na 1ª Parte deste trabalho: "Conferir-vos-ei essa graça, confiando em que, sem tardar, a Sé de Pedro será ocupada por um Sucessor de Pedro perfeitamente católico, em cujas mãos podereis entregar a graça do vosso episcopado para que ele a confirme".

Os bispos da Fraternidade São Pio X, zelosos da herança que receberam de Mons. Lefebvre, sabiam estar lidando com autoridades que continuam destruindo a Igreja. Leiam a admirável carta de Mons. Williamson no boletim do Seminário de Winona (EUA) de fevereiro de 2001.

Como fica claro no texto do boletim, não podemos cair no erro do sentimentalismo e deixar de considerar toda essa questão do ponto de vida doutrinário. O que está em jogo é nossa fé, e, por mais que desejemos ser reconhecidos pelas autoridades do Vaticano, não podemos aproximar-nos deles se não houver sinais evidentes de retorno à Tradição bimilenar da Igreja.

As Condições Preliminares

Apesar dessas graves apreensões, os superiores da Fraternidade São Pio X prontamente se apresentaram ao enviado do Papa, o Cardeal Castrillón Hoyos, como já vimos. Mons. Fellay encontrou-se com o Cardeal no dia 29 de dezembro de 2000, em Roma, e no dia seguinte esteve alguns minutos com o próprio Papa, que o abençoou.

Após terem examinado a questão, juntamente com o representante de Dom Licínio Rangel, bispo superior dos Padres de Campos (RJ), os bispos da Fraternidade São Pio X apresentaram às autoridades romanas duas condições preliminares para o início das negociações:

– suspender as censuras canônicas impostas injustamente aos bispos da Tradição;
– dar a todos os padres do mundo o direito de celebrar a missa de São Pio V sem constrangimentos.

Sobre estas duas condições, gostaria de tecer alguns comentários. Uma primeira objeção poderia ser levantada: Por que a Fraternidade São Pio X apresenta condições preliminares? Não deveria ela ficar agradecida por esse gesto de bondade do Papa, de querer regularizar a situação? A resposta a essa objeção já foi dada no boletim de Mons. Williamson citado acima. Como estamos diante de uma crise da fé, que dura já quarenta anos, com o escândalo de Papas e bispos ensinando uma doutrina contrária ao que a Igreja sempre ensinou, cabe a essas autoridades o ônus da prova de que realmente compreenderam o problema e querem restabelecer em Roma a doutrina tradicional da Igreja. Apesar de inferior hierarquicamente, a Fraternidade tem o dever de velar por sua liberdade de defender a fé.

Em relação à primeira condição, cabe lembrar que, canonicamente, a excomunhão de 1988 é nula, pois alega um ato cismático que não houve, como ficou provado na 2ª Parte deste trabalho. Além disso, esta condição se justifica pela existência de propaganda enganosa feita pelos bispos do mundo inteiro, que insistem em dizer que Mons. Lefebvre procedeu a um cisma.

Quanto à segunda condição, ocorre algo semelhante, pois os bispos insinuam que a Missa Tridentina está proibida, e a maioria dos fiéis acredita nisso. Mas as autoridades sabem que não é assim, que a Bula Quo Primum Tempore, do Papa São Pio V, outorga a todos os padres o direito perpétuo de celebrar a missa por este missal restaurado por ele. No curto texto dessa Bula, expressões como "... e isso para sempre" ocorrem onze vezes. O próprio Cardeal Stickler declarou que uma comissão de Cardeais chegou a esta conclusão: a Missa Tridentina não está proibida e não pode ser proibida.

Esta segunda condição não resolve todos os problemas. Longe disso. Mas, caso fosse aceita, marcaria uma reviravolta prática nas atitudes do Vaticano, e não somente uma mudança nas palavras e na simpatia. É claro que o quadro de destruição do mundo católico abrange todos os segmentos da vida: doutrina, liturgia, moral, catecismo, hierarquia etc. Mas aquele primeiro passo permitiria uma conversa em bases mais concretas.

O Bi-ritualismo

Na verdade, os cardeais não esperavam esta condição. As diversas declarações que foram aparecendo na imprensa mostram com suficiente clareza que a base do pensamento do Vaticano é a questão do birritualismo. Trata-se de considerar possível a convivência das duas missas, dentro da Igreja latina. Vimos como a Fraternidade São Pedro sucumbiu sob o peso de uma intervenção do Vaticano, por causa desta questão. O Vaticano considera, hoje, que é mais interessante ter padres tradicionalistas que celebram a missa de São Pio V e aceitam celebrar a de Paulo VI do que forçar esses padres a nunca celebrar a missa tradicional e vê-los passar por cima dessa determinação graças à Bula de S. Pio V. Nesse ponto, sim, podemos dizer que houve uma mudança na atitude das autoridades romanas. Mas essa mudança é política e não doutrinária.

O Cardeal Ratzinger declarou numa entrevista ao jornal italiano Il Giornale de 3 de abril de 2001 que isto é o que Roma espera da Fraternidade São Pio X:

"Il Giornale: — Que atitude devem ter os lefebvristas para se aproximar da Santa Sé?
Ratzinguer: — Reconhecer que a liturgia renovada do Concílio é a mesma liturgia da Igreja, que ela não é outra coisa. Reconhecer que a Igreja renovada do Concílio não é outra Igreja, mas é a mesma Igreja que vive e se desenvolve.
Il Giornale: — Que podemos fazer para ir ao encontro deles?
Ratzinguer: — Devemos reconhecer que, pela liturgia tradicional de São Pio V, eles estão na tradição eclesial comum. Devemos ser generosos para permitir que a tradição cristã comum se exprima em formas rituais diferentes. É um caminho de reconciliação difícil, como acontece em conflitos familiares. Devemos tomar a iniciativa no processo de reconciliação."

No dia 9 de março de 2001, o jornal francês Present publicou uma entrevista com o Cardeal Medina, Prefeito para a Congregação do Culto Divino. Também este cardeal considera o combate dos fiéis da Tradição uma questão de "sensibilidade", como se se tratasse de mera nostalgia das coisas antigas; ele mantém firme a tese do birritualismo:

"O Papa concedeu o uso do antigo rito a alguns institutos. Mas os padres que pertencem a essas comunidades, se são chamados a substituir um padre numa paróquia de rito novo, devem celebrar pelo rito novo, para não criar confusão [...]. Penso que devemos ser otimistas, desde que se reze bastante. Os problemas mais difíceis de resolver são os de sensibilidade."

Já a rede de informações Catholic World News adianta, em 28 de março de 2001, que dois cardeais se opuseram aos acordos com a Fraternidade São Pio X: o Cardeal Walter Kasper, recentemente nomeado pelo Papa Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade Cristã, e o Cardeal Mario Francesco Pompedda, Prefeito do Tribunal da Signatura Apostólica. Esses dois cardeais acompanham a opinião de alguns bispos franceses que se opuseram veementemente aos acordos. O resultado não tardou. O Cardeal Hoyos fez saber aos superiores da Fraternidade São Pio X que não seria possível aceitar a condição de liberar a Missa de São Pio V para todos os padres do mundo, pois isso significaria uma ruptura com o pensamento de Vaticano II.

Nós não podemos deixar de lembrar que os argumentos levantados pelos bispos franceses são de hipocrisia impressionante. Eles alegam que liberar a Missa de São Pio V, hoje, seria uma afronta ao nome de Paulo VI e ao Concílio Vaticano II. Ora, por que razão Paulo VI, quando estabeleceu a nova missa, não levou em consideração esse mesmo critério? Por que razão passou ele por cima de 1.500 anos de uso do antigo missal? Por que não respeitou a fé de milhões de fiéis do mundo inteiro, que sempre souberam que a Missa a que assistiam todo domingo transmitia um ensinamento verdadeiro e seguro sobre a teologia da Missa, sacrifício incruento de Cristo para a nossa salvação? Agora querem acusar-nos de causar confusão, como diz o Cardeal Medina, por não celebrarmos a missa nova. E a confusão que eles causaram, nos anos 70, quando invadiram todas as igrejas com esta missa que é mais um culto protestante, impondo-a sem piedade, derrubando todo o conjunto de ritos sagrados, de objetos sagrados, de linguagem sagrada, impingindo a banalidade e o mundano dentro das igrejas?

É muito difícil acreditar que pessoas com esse tipo de argumento tenham intenções santas, guiadas pelo amor de Deus e da Igreja. E não pensem que isto é juízo só meu. Os próprios padres franceses começam a compreender que seus bispos agem mais como políticos do que como pastores de almas. Eis o que escreve um padre que não quis reunir-se com um cardeal romano de passagem pela França. Notem que este padre, inserido dentro do mundo oficial, prega o birritualismo, do que discordamos, como estou mostrando. Porém, a boa fé, a reta intenção, o sofrimento mesmo deste padre, que deseja a Tradição, fazem de sua carta um belo testemunho contra os que pregam o mesmo birritualismo só para destruir a resistência dos tradicionalistas. O contraste é significativo. Carta do Pe. X

Fato é, porém, que essa questão do birritualismo, que está no centro das intenções das autoridades romanas, está muito longe do pensamento católico. Qualquer pessoa que queira estudar os deslizes na doutrina da missa nova encontrará nesta página alguns textos que examinam a fundo essa questão, textos esses escritos por eminentes teólogos, como o Cardeal Ottaviani, que era na época o Prefeito do Santo Ofício, órgão que tinha por missão preservar a doutrina contra os erros e heresias.

Um livro entregue ao Papa

A Fraternidade São Pio X, por sua vez, não tem a menor intenção de aceitar o birritualismo, pois conhece os erros doutrinários presentes na nova missa. Por isso entregou ao Cardeal Hoyos, junto com uma carta ao Papa, um livro escrito por alguns padres da Fraternidade que examina profundamente a Missa de Paulo VI. Este livro se chama O Problema da Reforma Litúrgica e está sendo traduzido ao português, para ser editado em breve entre nós. O trabalho consiste em analisar de modo claro e objetivo os diversos aspectos doutrinários, canônicos e litúrgicos do novo missal que se afastam da doutrina católica da Missa. Pode parecer sem muito interesse este livro entregue ao Papa, mas não é, muito pelo contrário. Os padres e movimentos fiéis à Tradição são acusados injustamente de não aceitar a missa nova sem dar, no entanto, suas razões. Isso não é verdade, pois os trabalhos editados desde 1969 foram muito numerosos e profundos. E o fato é que o livro O Problema da Reforma Litúrgica caiu como uma bomba nos corredores do Vaticano. Os cardeais não sabem muito bem que fazer com ele, como responder à altura. É preciso explicar que uma resposta de Roma deve necessariamente manter o nível da argumentação. Não adianta, diante de um trabalho teológico, aplicar o lavado argumento de autoridade, sempre usado contra os padres da Tradição: "obedeçam, obedeçam". Diante de um livro, só duas reações são possíveis: ou se argumenta respondendo à altura às críticas do livro, ou se ignora o livro, o que seria declaração de derrota.

No dia 2 de maio de 2001, o cardeal Hoyos recebeu o Pe. Simoulin, da Fraternidade São Pio X, e o Pe. Fernando Rifan, de Campos (RJ). Nessa conversa cordial o Cardeal leu para os padres o conteúdo do correio oficial que estaria mandando à Fraternidade alguns dias mais tarde:

"Quanto à primeira condição [liberar a missa], certo número de cardeais, bispos e fiéis acham que não se deve conceder essa permissão: não que o rito sagrado precedente não mereça todo o respeito, ou que se despreze sua sólida teologia, sua beleza e sua força de santificação ao longo de séculos em toda a Igreja, mas porque essa permissão poderia causar uma confusão na mente de muitas pessoas, que a compreenderiam como uma depreciação do valor da Santa Missa que celebra a Igreja hoje. É claro que nos estatutos de vosso retorno oferecemos todas as garantias para que os membros da Fraternidade e todos os que têm um atrativo especial por essa nobre tradição litúrgica a possam celebrar livremente em suas igrejas e lugares de culto. Pode-se também celebrá-la em outras igrejas com a permissão dos Ordinários diocesanos.
Quanto à segunda condição [suspensão das censuras], o Santo Padre tem a clara intenção de a conceder quando for formalizado o retorno."

Ou seja, os mesmos argumentos dos bispos franceses já comentados acima. O agravante é que agora trata-se de resposta oficial de Roma.

A primeira reação de Mons. Fellay diante desse posicionamento foi considerar que Roma depois de ter tomado a iniciativa de buscar uma solução para a Tradição, por motivos políticos, como vimos, recuou diante das condições doutrinárias e prudentes da Fraternidade. Mgr. Fellay expõe seu pensamento no Boletim Carta aos Amigos e Benfeitores, de 5 de maio 2001. Dois dias depois, Mgr. Fellay recebeu a carta do Cardeal Hoyos comunicando que não poderia liberar a missa de São Pio V para todos os padres do mundo, como citamos acima. Diante dessa situação, o superior da Fraternidade São Pio X escreveu uma resposta mostrando porque não seria possível continuar a negociar com o Vaticano. Veja em anexo esta carta.

Para completar nossa documentação, cabe ainda publicar o sermão pronunciado em Ecône, por Dom Alfonso de Galarreta, um dos bispos da Fraternidade, no dia 3 de junho de 2001. De todos os textos publicados nestes meses de negociações, parece-me ser este o que mais se aproxima do pensamento ou, ao menos, do estilo, de Mgr. Lefebvre: firmeza, clareza, mansidão.

No fundo tudo isso é muito estranho! É claro que há elementos graves e sérios que nos levam a desconfiar. Há trinta anos nos marginalizam, há trinta anos exigem que celebremos a missa de Paulo VI, há seis meses amordaçaram e amarraram a Fraternidade São Pedro... Evidentemente, as autoridades da Fraternidade São Pio X não podem achar isso tudo lindo e confiar plenamente nas intenções do Vaticano. É neste ponto que se encontram hoje, fins de maio de 2001, as negociações para um reconhecimento, por parte do Vaticano, dos direitos da Tradição. Poderão os superiores da Fraternidade aceitar as garantias dadas por Roma? É bem verdade que, pela primeira vez, eles não exigem a aceitação do Concílio e declarações doutrinárias. Mas também não aceitaram liberar a missa de São Pio V a todos os padres que quisessem. E depois? Será que darão, realmente, liberdade aos bispos da Fraternidade para governar e dirigir as capelas tradicionais que hoje celebram a Missa Tridentina? E quando os bispos diocesanos perseguirem os padres da Tradição, o Cardeal Ratzinguer vai continuar afirmando que não pode se opor a eles? Não foi isso que ele disse ao Padre Louis Dermonex, expulso de sua paróquia na Itália porque queria celebrar a missa de São Pio V? (ver cartas)

Porém existe uma conclusão lógica que precisa ser tirada disso tudo: o Vaticano sabe que não há cisma! O Vaticano sabe que a excomunhão é nula! E é por isso que eles insistem tanto em nos ver "unidos" novamente. Seria a maneira mais discreta de consertarem o erro absurdo que cometeram ao excomungar Mgr. Lefebvre. E como eles não querem abrir mão da nova teologia protestante que reina em Vaticano II e no Vaticano de hoje, eles simplesmente não querem falar no assunto. Espertos eles são, também mestres na diplomacia.... mas a fé que eles professam, ainda é a fé católica?

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