Manuel Catarino
Correio da Manhã
O povo do Norte do País foi surpreendido, a partir do início de Junho de 1975, por vários panfletos do ELP (Exército de Libertação Português) – um grupo de extrema-direita disposto a travar a tiro, à bomba e pelo fogo os que chamava de «assassinos comunistas». A propaganda distribuída clandestinamente pelo ELP era um claro apelo ao terrorismo: «Cada Português deve ser um Combatente».
Sedes do PCP, do MDP/CDE e da UDP foram atacadas à bomba, assaltadas ou reduzidas a cinzas por fogo posto. Ao longo do “Verão Quente” de 1975, registou-se pelo menos uma centena de atentados, sobretudo no Norte do País. Os primeiros tiveram como alvo a sede do MDP/CDE, em Bragança, no dia 26 de Maio, e o Centro de Trabalho do PCP, de Fafe, em 12 de Junho. Ao lado do ELP nestas acções directas o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP) – dois movimentos ligados à extrema-direita civil e militar que actuavam clandestinamente a partir de Espanha.
Entre esses “exilados” no outro lado da fronteira, estavam Paradela de Abreu – o homem que em Fevereiro de 1974, no estertor do Regime, editou o livro de António de Spínola, Portugal e o Futuro, que defendia uma solução política para as colónias e abriu caminho ao golpe de 25 de Abril – e o engenheiro Jorge Jardim, antigo secretário de Estado de Oliveira Salazar, que ganhou fama e glória em Moçambique, como empresário, político, agente secreto, amigo pessoal de Ian Smith, líder da Rodésia, e do presidente Banda, do Malawi.
Paradela de Abreu tinha um plano – um plano aparentemente impossível de pôr em prática: pretendia colocar a Igreja no combate de acção directa contra o avanço da revolução. Sonhava fazer de cada padre um chefe político, servir-se dos púlpitos como tribunas de esclarecimento, transformar cada paróquia num reduto anticomunista. Este sonho de Paradela era o embrião do movimento “Maria da Fonte” – uma tendência que acabou por aglutinar o ELP e o MDLP.
O Norte do País, região tradicionalmente mais conservadora, seria terreno fértil para lançar as sementes do movimento “Maria da Fonte”. Era preciso, no entanto, colocar a Igreja do mesmo lado. Aqui entra o engenheiro Jorge Jardim, personagem talhado para as artes das operações especiais. Jardim põe então em prática um temerário plano, digno de um enredo de espionagem, para envolver a hierarquia da Igreja do Norte na luta da contra‑revolução. Primeiro passo: obter o apoio do arcebispo de Braga, D. Francisco Maria da Silva.
Nem Jorge Jardim, nem Paradela de Abreu falaram com o prelado. Se ele afastasse qualquer hipótese de colaboração o plano iria por água abaixo – risco que eles não quiseram correr. Escolheram caminhos ínvios. Empurraram o arcebispo para a luta sem ele suspeitar, por um segundo, que estava a ser manobrado.
Em meados de Junho de 1975, faz agora 30 anos, D. Francisco Maria da Silva estava de partida para uma viagem pastoral ao Brasil. O avisado Jorge Jardim viu aí uma oportunidade de ouro.
Fez chegar uma carta anónima ao COPCON – uma espécie de “guarda pretoriana” da revolução comandada por Otelo Saraiva de Carvalho – com uma mentira calculada: D. Francisco Maria da Silva preparava‑se para abandonar o País, com destino ao Brasil, na posse de muito dinheiro que não lhe pertencia. No dia da viagem, 13 de Junho, quando chegou ao Aeroporto das Pedras Rubras, o arcebispo foi imediatamente cercado por um pelotão de espingardas G-3 aperreadas. D. Francisco Maria da Silva sofreu a maior humilhação da sua vida. Os militares levaram-no à força para uma sala e despiram-no dos pés à cabeça. A bagagem foi revistada. Mas do dinheiro nem o mais leve sinal. O arcebispo sentiu na pele as agruras da revolução. Era isso que Jorge Jardim e Paradela de Abreu pretendiam – que ele se sentisse ofendido com os desmandos da tropa.
Quando regressou do Brasil, em finais de Junho, o arcebispo vinha disposto a travar um combate contra o Partido Comunista. A estratégia engendrada pelos líderes do movimento “Maria da Fonte” resultara em cheio. Paradela de Abreu entra clandestinamente em Portugal para um encontro com D. Francisco Maria da Silva. O arcebispo aceita colocar a “sua” Igreja ao serviço do grande desígnio da luta anticomunista e destaca um eclesiástico do cabido da Sé de Braga para apoiar a revolta – o então cónego Eduardo Melo.
Nas semanas que se seguiram, o Norte de Portugal ficou a ferro e fogo: registaram-se durante o Verão, pelo menos, uma centena de atentados contra sedes do PCP, MDP/CDE e UDP. Enquanto as sedes comunistas eram atacadas, a Igreja organizava manifestações nas principais cidades do Norte – foi assim em Aveiro, Bragança, Coimbra, Lamego, Braga, Vila Real, Viana do Castelo.
REVOLUÇÃO DIA A DIA
12 de Junho – Todas as empresas de transportes públicos nacionalizadas dão origem a uma só – nasce a Rodoviária Nacional; Militares do MFA passam a dirigir a Emissora Nacional.
13 de Junho – O Presidente da República, general Costa Gomes, parte em visita à Roménia.
16 de Junho – Assalto à sede da UDP em A-Ver-o-Mar, distrito do Porto.
18 de Junho – Manifestação promovida pela UDP à porta do Patriarcado, em Lisboa, em defesa da ocupação da Rádio Renascença pelos trabalhadores. Contra-manifestação a favor do patriarcado acaba em pancadaria.
MONSENHOR EDUARDO MELO
Uma estátua está guardada num armazém desde 2003 à espera de ocasião para ser colocada no centro de uma rotunda de Braga – a de monsenhor Eduardo de Melo Peixoto, ainda vivo. A obra está à altura da personalidade: oito metros de altura e três toneladas de peso. O episódio da estátua é revelador da fama do clérigo pelo Minho. Os amigos que encomendaram a estátua amam-no. Mas os que não esquecem o papel de Eduardo Melo no terrorismo de extrema-direita que incendiou o Norte movimentaram-se para impedir que a estátua visse a luz do dia. Monsenhor Melo resignou, há dois anos, ao cargo de vigário-geral da diocese.
LIÇÕES DO ELP SOBRE TERRORISMO
Panfletos distribuídos pelo Exército de Libertação Português ensinavam detalhadamente como fabricar os cocktail Molotov – mistura incendiária numa garrafa, como eles diziam, a «arma por excelência da guerrilha urbana».
A mistura era composta por gasolina (50 por cento), óleo utilizado nos motores de automóvel (25 por cento) e ácido sulfúrico (25 por cento). No exterior da garrafa, deveria ser fixada com fita adesiva uma compressa de gase em forma de saco – que levaria lá dentro uma porção de clorato de potássio equivalente a duas colheres de sopa e a mesma quantidade de açúcar branco, refinado. «Ao ser lançada contra o objectivo, a garrafa parte‑se. A mistura de gasolina, óleo e ácido sulfúrico incendeia-se e explode em contacto com o clorato de potássio misturado com o açúcar».
O ELP identificava os alvos dos cocktails Molotov: «as forças repressivas do PC-MFA»; «manifestantes»; «sedes de partidos e residências».