Wednesday 19 January 2011

A MINHA MÃE NÃO!



http://combate.blogspot.com/2007/06/solidariedade-com-o-prof-antnio-balbino.html

Quarta-feira, Novembro 17, 2004  

A minha mãe, não!
Este post é escrito pela minha irmã. Deveria ser eu a falar sobre o assunto, mas não quero exceder o tom mantido neste blogue. Aguento esse tom sob os olhos e o coração dela - que é o de todas as mães.
 
Chama-se Maria Arsénio Balbino. Nasceu nos Capuchos, junto a Alcobaça. Filha de pais simples, mas com uma formação humana e moral ímpar. Aluna brilhante, por preconceito da família, não seguiu para a Universidade. Formou-se a contragosto professora do ensino primário.

Mas nunca trabalhou contravontade. Exerceu a sua profissão com zelo, afinco e entrega. Foi professora durante 42 anos, durante os quais deu um total de... 12 faltas. Era exigente e severa, mas nunca desistiu de nenhum aluno.
Recorda um que recebeu já com duas reprovações na 1ª classe; com ela, passou os quatro anos, seguiu em frente e acabou por se licenciar. Ao longo da sua vida profissional, trabalhou milhares de horas para além do seu horário: aulas extraordinárias na escola e, quando isso já não era possível, ensinava em casa os alunos mais fracos, com dificuldades, sempre gratuitamente.
Foi adjunta da delegação escolar, onde para além do seu horário normal, fazia uma infindável “escrita”, que eu não percebia o que era; foi directora por várias vezes, quando o cargo era pouco apetecido porque acrescentado ao trabalho normal do professor, sem ganhar nada mais por isso. Nunca fez disso caso, era coisa tida por ela como “natural”.

Foi catequista durante outros 40 anos. Serviu a sua comunidade exemplarmente.Dela sempre recebi as sentenças mais duras. E acertadas. “Foste seleccionada para a prova de natação; mas não podes ir, não podes faltar à catequese”; “Não queres ficar a manhã sozinha em casa, mas não podes ir para a minha sala. Não é permitido. Ficas no átrio até à hora das tuas aulas à tarde, és aluna desta escola; assim não há problema”.Ela é a pessoa mais bem formada e mais imparcial que conheço. Nunca perdeu tempo a ensinar-me, mas perdeu muito a educar-me: “Nunca se mente”; “A julgar qualquer situação, devemos ser rectos como o sol”; “Antes quero ficar prejudicada nas minhas contas, do que ficar com um tostão que não é meu”.
“Nunca nos pomos à frente dos outros, para ninguém nos dizer «chegue-se lá para trás»”. Ensinou-me a nunca deixar de falar a ninguém; a ser correcta mesmo quando não são correctos para nós; a perdoar. A minha mãe sempre se continuou a relacionar e até estimar pessoas que lhe causaram danos na sua vida. Dir-me-ão que me ensinou tudo ao contrário. Eu continuo a pensar que me ensinou tudo certo.

Ela nunca seguiu uma pessoa, uma ideologia, um partido. Foi antes sempre fiel à sua identidade primeira: ser cristã. Nunca a vi com um dilema moral; simplesmente actuava sem hesitações segundo os seus princípios da justiça e da honestidade, mesmo que se prejudicasse ou incomodasse alguém com a sua decisão.

Há poucos anos atrás, foi-lhe diagnosticado um cancro. Com a promessa de ser operada dali a mês, mês e meio. Passaram quatro meses. Pessoas conhecidas a quem foi diagnosticado depois, foram operadas antes dela. O irmão da sua afilhada era médico nesse hospital. Mas ela explicava: “Não vou pedir a ninguém para ser operada mais cedo. Não ficava bem com a minha consciência ao passar à frente de pessoas eventualmente com casos mais graves. Seja o que Deus quiser”.

É uma mulher sábia. Antes do 25 de Abril chamava “velho de má pêlo” a Salazar que “para poupar nem a auto-estrada de Lisboa-Porto acabou”. Mas depois, sentenciou que “não vai ser julgado nenhum PIDE, sabem demais”. Com efeito, só numa noite “fugiram” 89, como sabemos. Em casos recentes, desde o princípio, diz ela: “escusam de estar, não se iludam, só lá fica o Bibi... nunca vi nenhum grande ser apanhado neste País”.

Pela sua experiência e perspicácia, sabe tudo sobre este Estado, onde se libertam suspeitos dos piores crimes e, agora, se perseguem pessoas de bem.

Mas nem ela podia prever o que se viria a passar...
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada...”


Foi esta mulher, de 78 anos de que vos falo, que no dia 27 de Outubro último, às 7:00 horas, antes de clarear o dia, estremunhada, atende à porta. Em camisa de dormir. Devia ser um dos filhos, talvez algum dos netos se tivesse esquecido ali de um livro da escola. Era a Polícia Judiciária, com um mandado de busca a sua casa. Que não, esclarece ela, o filho António já não morava ali desde há 11 anos, quando se casou. Mas quem dirige a operação bem o sabe. À mesma hora, estavam em casa do filho, um procurador e outros dois inspectores; na casa dele o encontraram. Ainda assim, prosseguiram as buscas a casa da mãe, revistando-a. Era então por causa de um blog na Internet, em que o seu filho escreve, “às vezes, ferem-se certas susceptibilidades”, justificam. Era ali o quarto do filho? “Não é o quarto de hóspedes, onde os meus netos dormem quando cá ficam”. E o computador, que ela tinha comprado em 1993, para os filhos, que ali viviam quando solteiros, sem ligação à Internet? Foi-lhe apreendido (!!) embora ela não seja suspeita nem arguida de coisa nenhuma. E não sabe quando, e se, lho devolverão.

Recebeu muitos telefonemas e expressões de solidariedade. Dos verdadeiros amigos, boquiabertos, indignados. Ela pouco se queixou, lamenta mais o susto dos netos: “a busca à minha casa estava no mandado, mas o carro da minha nora... e com as crianças lá dentro?!!! Os miúdos ainda perguntam se aqueles homens vão voltar outra vez!”.

Há uns dias atrás, recebeu uma carta do Ministério Público. Foi lá hoje, candidamente, julgando que tinha que ver com uma tentativa de assalto, há uns meses, com uma faca apontada. Que nada! Esse caso não deve ter prioridade. Foi outra vez INTERROGADA sobre o gravíssimo crime de que é suspeito o filho, que tem 40 anos e reside em casa própria há onze. E de que crime é suspeito o seu filho? Abusou de alguma criança, foi corrupto, traficante de droga, responsável por falência fraudulenta? NÃO! Simplesmente, não se cala. É suspeito do “crime” de não actuar como animal amestrado, de rejeitar baixar a cerviz à corrupção do sistema, da sua natureza neutralizar as injecções de anestesia que vamos recebendo todos nós, povo anónimo.
A minha mãe foi toda a sua vida uma rocha de integridade, um modelo de honestidade e serviço. Seria bom que todos os agentes da justiça, incluindo aqueles que comandaram e autorizaram esta operação, tivessem pelo menos metade da sua honestidade, da sua rectidão, do seu zelo profissional. Não posso conformar-me com isto que se passou. Chateiem os filhos, intimidem-nos, procurando amestrá-los. Mas a minha mãe, não! Deixem-na fora disto.

A ela não lhe farão nenhuma estátua, não darão o seu nome a nenhuma rua. Mas nas estradas do meu coração, a avenida larga da dignidade, da rectidão e da inteireza moral tem o seu nome. Ao contrário de arguidos famosos, não se levantará a voz de nenhum líder partidário, de nenhum bispo, de nenhum “bastonário da ordem dos professores” ou “defensor” dos direitos humanos. Não é preciso. Ela não necessita de defesa.Quem a defende é a sua vida impoluta.
Talvez não da injustiça dos homens.

Mas inteiramente perante as instâncias que importam.

Perante os amigos. Perante a família. Perante si mesma. Perante Deus.

Repito. A minha mãe, não!


Ana Maria Caldeira

Alcobaça, 16 de Novembro de 2004
Publicado por Antonio Balbino Caldeira às 02:12




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