Os terríveis abusos no colégio S. João de Brito
Eu creio que a generalidade das pessoas que me lêem sabe que frequentei, durante 10 anos, o colégio S. João de Brito, dos Padres Jesuítas. O que ignoram por completo são os terríveis abusos que lá aconteceram, no meu tempo.
Passados tantos anos, não podendo guardar mais o segredo, sinto como imperioso o dever de denunciá-los.
No primeiro dia em que cheguei ao colégio, para frequentar o que então se chamava a primeira classe, desatei num berreiro, com tal fúria, que ninguém me conseguiu pôr dentro da sala de aula. Queria a minha mãe! Que me devolvessem a ela! Somente depois de um intervalo é que veio o Irmão Diniz, que apesar de ter levado várias caneladas e provavelmente algumas dentadas, lá conseguiu, acolitado por ajudantes, introduzir-me na sala de aula.
Este Irmão em paga dos seus longos anos de serviço tentando infundir alguma ordem na horda de bárbaros que nós éramos foi alcunhado de cágado, talvez em virtude do seu fácies ter uns longes do focinho desse bicho. Muitas vezes orientava a oração da manhã na Igreja e foi com ele que aprendemos a oração “Alma de Cristo, santificai-nos, etc.”. Mal podia então eu supor que essa oração voltaria muitos anos depois aos meus lábios, já sacerdotais, como uma das poucas consolações espirituais e revigorantes num período de aridez, de noite tenebrosa.
Nos dois primeiros anos do liceu (quinto e sexto actuais) para além de ter apanhado uma bebedeira monumental, ter vomitado durante a leccionação de uma disciplina, entretinha-me em provocar os professores, quase todos Padres. Quantas vezes o bom P. Ferreira da Silva[1] teve de correr atrás de mim à roda da sala de aulas porque eu fugia aos correctivos que me queria dar. Acabava expulso, mas isso de nada adiantava porque me entretinha a escancarar a porta fazendo caretas que punham a turma a rir ou em polvorosa.
O santo P. Pacheco, homem de uma benignidade extraordinária, foi ao longo dos anos submetido às patifarias e ao ridículo de gerações sucessivas de alunos. Como a sua bondade era lendária todos dela se aproveitavam. Uma das centenas de partidas que ficou mais famosa foi a de lhe colocarem “bombinhas de mau cheiro” na cadeira onde se sentava para leccionar. A atrapalhação tamanha em que ficou, chegando a pensar que teria tido uma descarga intestinal sem se dar conta, o seu nervosismo convulsivo, a vergonha estampada na cara vermelha como uma malagueta, tudo isso era para os alunos um gáudio imenso. Este grande varão, distraído como um Einstein, nas aulas práticas de físico-química era capaz de ao advertir-nos para a possibilidade de apanharmos um choque, recomendar-nos para não colocar o dedo onde ele o punha!, apanhando o tal choque eléctrico a que nos queria poupar.
Fazia-lhe a maior das impressões ouvir o tilintar metálico de objectos caídos no chão. Pois sabendo nós disso fizemos trocar o dinheiro que tínhamos em 50 moedas (que naquele tempo tilintavam mesmo) que foram sendo lançadas durante toda uma aula.
Pior do que isso foi o meu aproveitamento da confissão e da direcção espiritual para faltar às aulas. Ia para o confessionário ou ao gabinete de um Padre e colocava-lhe dúvidas sucessivas. Lembra-me perfeitamente de passar assim conversando hora e meia, duas horas, enfim o tempo que queria. O Sacerdote que então me acompanhava era de uma seriedade e preocupação para comigo verdadeiramente notáveis. Quando não sabia como me responder procurava consultar os livros de teologia e se encontrava a resposta era capaz de me chamar, interrompendo uma aula, para me esclarecer. Mas eu sonso e hipócrita logo colocava nova dificuldade, outra dúvida, enfim aquilo que fosse necessário para manter o jogo. Soube mais tarde que ele veio a abandonar o sacerdócio. Não tenho a presunção de pensar que foram as minhas dúvidas ou questões que o levaram a dar tal passo, mas não posso deixar de pôr a hipótese da minha canalhice ter contribuído para isso.
Quando íamos a retiro - só ia quem queria -, na casa de exercícios de Santo Inácio, no Rodízio, Praia Grande, aproveitámos mais que uma vez para disparatar. Pelos 15 anos de idade roubei uma garrafa de champanhe lá em casa e levei-a escondida para um desses encontros de silêncio. O resultado, como é claro, não podia ser bom. Para além dos excessos do álcool, nesse retiro roubaram os fusíveis todos da casa e partiram o vidro de um automóvel de um infeliz que lá estava a descansar.
Por que é que o excelente P. Filipe Ribeiro teve a infelicidade de, numa manifesta brincadeira, diante de meus pais, me ter dito que nunca mais me falava? Porquê logo a mim? É que por causa disso durante três anos não só me recusei a dirigir-lhe a palavra como não respondia sequer às que ele me dirigia. Vim depois a saber que aquela minha recusa teria levantado suspeitas sobre o bom P. Filipe. Quanto terá ele sofrido à conta disso? E nem sequer lhe posso pedir perdão, pois já morreu.
Por que é que o famoso e profundo pregador Jesuíta, P. Ramon Cué, autor daquele famosíssimo “Mi Cristo Roto”, me teve de aturar quando assomando à varanda do seu quarto para meditar deu comigo gesticulando, em cima do telhado fronteiro, descalço mostrando-lhe as peúgas rotas no calcanhar, improvisando uma “pregação” cretina sobre as mesmas?
Como esquecer a vingança que exerci no fim de um ano lectivo, no último dia de aulas, despedaçando um lavatório, escaqueirando uma retrete e pintando uma parede com o arremesso de uma garrafa cheia de tintas misturadas que nela deixou uma nódoa durante muitos anos? Vingança, sim, sobre aquele colégio que para além de me ter lá a estudar de graça durante muitos anos tinha ainda a veleidade de me dar uma boa preparação para garantir o meu futuro!
Estas são algumas das coisas que se podem contar,rque há outras que é melhor nem lembrar. Olhando para trás e tomando consciência das imbecilidades sádicas, contínuas e sistemáticas, perpetradas contra os Padres e Irmãos não posso deixar de confessar que fui sempre um abusador terrível. E de admirar-me como é que nunca nenhum deles perdeu a paciência a ponto de me dar uma tareia. Como dizia uma tia minha, o que eu precisava era de uma sova que me “rachasse de alto a baixo”.
Benditos Padres da Companhia de Jesus que me aturaram a mim e a muitos outros com um enorme espírito de serviço e de abnegação, mostrando uma paciência e uma humildade raras.
Mais tenho de dizer que nunca por nunca, mas mesmo nunca, ter sentido, visto ou sequer ouvido falar de qualquer abuso ou indício ou suspeita de cariz sexual. E, por isso, nunca me passou pela cabeça que um Sacerdote fosse capaz de tais abusos.
Já não posso dizer o mesmo de um outro colégio que frequentei durante um ano onde entre os alunos se falava de atitudes impróprias de um professor, que de resto não era Padre.
Os “dignitários” Jesuítas durante séculos serviram voluntariamente de capacho a muita gente, sendo espezinhados pelo muito bem que faziam.
Nuno Serras Pereira
05. 04. 2010
[1] Havia vários irmãos Jesuítas. Este era o que fabricava carrinhos que funcionavam com motores de mota e nos serviam de divertimento nos intervalos
LOGOS Segunda-feira, 5 de Abril de 2010
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