Saturday 25 February 2012

A INFANTA REBELDE


Mafalda", a intensa vida de uma infanta de Bragança

25.02.2012 - 15:40 Por Nuno Ribeiro

Maria Adelaide de Bragança participou na resistência ao nazismo (Pedro Cunha)

Livrou-se da morte por Salazar lhe ter concedido passaporte diplomático. Foi salva da deportação para a Sibéria por ter ajudado comunistas austríacos. Quando regressou a Portugal, deparou com o despovoamento intelectual da classe dirigente. Um exemplo da convivência difícil de monárquicos e católicos com o regime nos anos 50.

Maria Adelaide de Bragança van Uden, neta do rei D. Miguel, morreu na sexta-feira, na Caparica. Tinha feito 100 anos a 31 de Janeiro.

Foi condecorada como Grande Oficial da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Cavaco Silva. Neta do rei Dom Miguel, tem uma história impar. Viveu e sofreu as duas guerras mundiais do século passado. Participou na resistência ao nazismo. Lançou inovadoras obras sociais em Porto Brandão, no início da industrialização da margem sul. "Mafalda" – nome de código na Resistência –, infanta de Bragança, foi protagonista de uma intensa vida.

"Ela nunca nos falou disso abertamente, só com a idade e com alguma pressão começou a falar, lá de vez em quando vai contando", diz Nuno van Uden, filho de Maria Adelaide de Bragança. "Disso" é o resumo de anos de risco. Correu-os seguindo o princípio de ultrapassar o temor: "Ter medo de ter medo." Na Áustria enfrentou a ocupação nazi. Com todas as consequências. Em 1944, com a sua irmã Maria Benedita foi presa e condenada à morte por ouvir a BBC. As pressões de Oliveira Salazar junto do Reich e a concessão de passaporte diplomático português salvaram-lhes a vida.

"Esteve detida durante mais de cinco meses", calcula o filho. Terão sido nove os meses de cativeiro. Então, na cela ao lado da prisão de Viena estava o conde Claus Schenk von Stauffenberg, que liderara o atentado falhado contra Hitler. "Tudo o que vi obrigou-me a empenhar-me a sério na Resistência", confirmou a Raquel Ochoa, autora da biografia A Infanta Rebelde (Oficina do Livro, 2011).

Nas mãos da Gestapo

Foi assim que passou a integrar a rede da organização O5. Se a entrada dos nazis em Viena e a anexação da Áustria, em 1938, impediram que concluísse o curso de Enfermagem no hospital de Rudolfinerhaus, a resistência ganhou um elemento determinado e corajoso. Uma activista católica formada em assistência social. "Cheguei a saber onde iam ser lançadas as armas para a nossa e outras organizações a que estava ligada", recordou no livro. Entre elas, entidades austríacas de apoio a judeus, britânicos e comunistas

Dava apoio a clandestinos, organizava transportes de armas e alimentos que os ingleses lançavam. Tinha o nome de código "Mafalda", em homenagem a uma sua irmã já falecida. Perto do final da guerra é novamente detida pela Gestapo. No bolso de um militante comunista foi encontrado o seu número de telefone e, apesar de ter fugido da sua casa na localidade de Seebenstein, acaba por ser capturada em Viena. A repressão nazi encheu a prisão de resistentes, alguns dos quais passaram a estar detidos num hotel ocupado para este efeito pelos alemães. Foi aqui que viveu quatro meses de cárcere com inquietação e perplexidade. Não muito longe do quarto onde a encerraram estavam armazenados os registos dos militantes a eliminar pelas tropas alemãs.

"Estava muito interessada em que esta lista desaparecesse", refere no livro de Raquel Ochoa. "Por isso dei a indicação onde deveria cair a bomba." O bombardeamento foi certeiro. E a actividade de "Mafalda" ganha, assim, outros contornos, para além de resistente. A sua colaboração com os ingleses era estreita. "Há uma série de coisas que quem está na resistência tem de esquecer, porque nos interrogatórios pode ceder e pôr em causa a organização", explica Nuno van Uden. Aqui encontra a razão para que a sua mãe só de "vez em quando" se recorde deste passado. São fragmentos. Episódios. Longe de um relato.

A entrada das tropas do Exército Vermelho em Viena não lhe devolveu a liberdade. Por ser resistente não comunista e aristocrata, tinha a rota marcada: a deportação para a Sibéria. A tão desejada destruição dos arquivos nazis por uma bomba teleguiada pelas suas informações impedia, agora, a confirmação do motivo da sua prisão. No entanto, a explosão não destruíra todos os documentos. Por acaso e muita sorte, um oficial russo encontrou a ordem de prisão da Gestapo. Na ficha constavam as razões da detenção de "Mafalda": o seu relacionamento com um comunista. Dois dias antes de ser deportada, foi libertada. "Foi assim que me safei", relatou na sua biografia.Com a entrada das tropas aliadas em Viena, em liberdade numa cidade destruída, integrou as equipas da Cruz Vermelha Internacional que auxiliavam feridos e doentes. Nessa missão de enfermeira com curso inacabado, faltava-lhe a última cadeira, conheceu Nicolaas van Uden, um jovem estudante de Medicina holandês. Com ele se casou sem luxos de infanta.

A descoberta de Portugal

A África era o destino sonhado pelo casal. A Etiópia seria a primeira paragem de um percurso desejado para assistir as populações locais. Contudo, em 1948, pela primeira vez na sua vida, pisou solo português. Aterrou no aeroporto de Lisboa com o marido e dois filhos. Foi o fim do exílio. Acabam por instalar-se numa quinta em Murfacém, na Trafaria, que pertencera a Nuno Álvares Pereira.

Maria Adelaide de Bragança descobre o seu país. Um país pobre, de múltiplas carências. Visita as barracas de Porto Brandão, os galinheiros onde vivia a mão-de-obra nos primórdios da industrialização da margem sul. Cenários de muitas necessidades. De profunda miséria. Uma revelação que a incomoda. Lança uma obra social, à margem dos usos e costumes do regime. Com sentido prático e sem pose. Chamou-lhe Fundação Don Nuno Álvares Pereira. E descobre também o despovoamento intelectual do regime. Uma confrangedora falta de ideias e iniciativas para quem, nascida em 31 de Janeiro de 1912 em Saint-Jean-de-Luz, junto à fronteira hispano-francesa, sempre vivera na activa Europa central da primeira metade do século passado.

Agradecida a Salazar por a ter salvo das garras da Gestapo em 1944, vivia uma contradição pessoal. "Caiu-me muito mal saber que ele trouxe um oficial da Gestapo para ensinar a PIDE a reprimir os comunistas e todos os seus opositores", admite a Raquel Ochoa.

A sua perplexidade não é caso único entre monárquicos e católicos. "Nos anos 50, a frente política criada por Salazar começa a desfazer-se", refere o historiador Fernando Rosas. "Dessa frente faziam parte monárquicos, católicos e militares." Com o fim da II Guerra Mundial e o início das transformações económico-sociais do regime aparecem as contradições. Adelaide de Bragança anota-as na sua observação do quotidiano de dificuldades de quem ajuda em Porto Brandão. Afinal, a sua experiência na Europa central era de outras práticas sociais e de um desenvolvimento diferente.

"Como o país está a industrializar-se, tornou-se mais patente a injustiça da distribuição, à sensibilidade católica choca a pobreza", anota Fernando Rosas. A infanta não está apenas chocada. Nem reserva só para si as imagens que vê. Filma-as para despertar a consciência da gente da sociedade. São os tempos de outros "despertares" e do consumar de dissidências. "É o caso de Humberto Delgado, Norton de Matos e do padre Abel Varzim", exemplifica Rosas.

A aspiração de D. Duarte

O incómodo de Maria Adelaide tinha ainda outros motivos. Sendo neta de D. Miguel, portanto monárquica, via que o papel dos seus no regime de Oliveira Salazar não estava definido. "A política de Salazar jogou com monárquicos e republicanos, tentando reter o apoio dos monárquicos sem alienar os republicanos", refere o historiador Rui Ramos. Até porque, acrescenta, o ditador "não é monárquico nem republicano". Para ele, é indiferente a questão do regime que marcara o fim do século XIX e as primeiras duas décadas do século XX.A infanta também não desconhecia que uma hipotética restauração da monarquia não estava na agenda política do regime. Afinal, que o seu irmão Duarte nunca reinaria. "Salazar utilizou a divisão da família real entre miguelistas e constitucionalistas para conseguir o máximo consenso com o mínimo custo", alerta Ramos. E recorreu a um expediente tradicional, uma forma de controlo primária, mesmo grosseira mas eficaz. "Salazar teve sempre muito cuidado para que a família r eal não tivesse meios, de que nunca conseguisse ter autonomia financeira, pelo que não deixou que herdassem os bens de Don Manuel", acentua. Em síntese: queria a realeza "dependente e vulnerável".

Não era única a contradição pessoal de Maria Adelaide de Bragança com o regime salazarista: no seu agradecimento, enquanto "Mafalda", pela concessão do passaporte diplomático que a salvara do fuzilamento; na limitação das suas aspirações como infanta; no seu olhar crítico como cidadã. De algum modo, expressava a dúvida maiúscula de alguns sectores monárquicos. "Perguntavam-se se a melhor situação era estar ao abrigo do Estado Novo", explicita o historiador Rui Ramos. É quando no seio dos que apoiaram o regime aparecem as primeiras dúvidas.

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