Sem-abrigo. Ninguém conta as vidas que vão parar à rua como eles
Por Marta F. Reis
publicado em 15 Jun 2013 - 14:48
publicado em 15 Jun 2013 - 14:48
Na gare do Oriente dormem 40 pessoas. Só em Lisboa há três vezes mais sem-abrigo do que as estatísticas nacionais atribuem a todo o país.
Luís tem 43 anos e saiu de casa com 16. Eram 11 irmãos numa aldeia do concelho de Alcobaça. Em miúdo, o tempo era passado no campo, a trabalhar sem ganhar e a comer pouco. "Era uma escravidão. Para arejar, comprávamos um maço de tabaco e ficávamos fora até fumarmos os cigarros todos. Em casa levávamos." Chegou a Lisboa e começou a trabalhar nas obras. Um dia experimentou heroína com um colega e ficou 20 anos agarrado. O patrão metia-os na carrinha e a caminho do estaleiro parava para curarem a ressaca. "A minha vida é uma história de terror. Que quer que lhe conte?"
Aos 9 anos viu o melhor amigo morrer afogado, viu a mãe ser espancada e ficar em casa a aguentar - ainda lá está. Nunca mais falou com o pai, mas ela vai ligando. Deixou-se levar pela droga enquanto estava incluída no salário. Depois tornou--se difícil continuar a trabalhar daquela forma e quis parar de consumir. Começou uma desintoxicação numa comunidade terapêutica e parou antes do fim, a pensar que estava livre. Meses depois voltou ao mesmo. Há seis anos tentou uma segunda e ficou limpo. Acredita que é de vez, porque desce as ruas onde se injectam os velhos amigos e não se se sente tentado. Com mais baixos que altos, assume a depressão diagnosticada pelo médico. "Como é que podia ter acabado de outra forma?", remata. Instável, mas limpo, ainda arranjou trabalho. Pagava um quarto. Depois, outro depois, o serviço começou a falhar. Há cinco meses ficou na rua.
As histórias dos sem-abrigo que as aceitam contar são assim: cruas, rápidas, desarmantes. Perturbadoras por terem tantas vezes um rastilho antigo, casas onde faltaram os pais, onde faltou dinheiro. Onde sobejava álcool e violência. Ou simplesmente um azar. Há um antes e um depois que acaba na rua, seja a calçada, seja o caixote, a casa abandonada ou o albergue.
Luís conseguiu vaga no abrigo nocturno da AMI, na Graça, um dos seis espaços na cidade que faz que metade dos 2 mil sem-abrigo sinalizados, números revelados pela vereadora Helena Roseta, não durmam na rua. Só por estes números, divulgados há duas semanas, percebe-se que é normal não se saber ao certo quantos sem-abrigo existem em Portugal, porque as estatísticas estão longe de espelhar a realidade. No último censo, o Instituto Nacional de Estatística contou 696 pessoas sem tecto. Só em Lisboa, pelos dados da autarquia, há o triplo. O INE só contabiliza quem está na rua. Fica de fora quem dorme em albergues, como o abrigo da AMI, que abre ao fim do dia e fecha pelas 9h. Fica de fora quem não está à vista.
Eles contam Não gostam de falar, mas quando o fazem contam-se melhor que qualquer estatística. Vítor, 58 anos, casou-se com 22 anos. Jogador profissional de basquetebol, trabalhava na fábrica militar do Braço de Prata, a fazer munições. Perto dos 30, chegou ao fim a carreira no basquete e teve o seu depois. Apesar de ter casado jovem, e de ter um filho pequeno, o tempo livre e as amizades deram-lhe a conhecer a noite e o álcool. Um dia, nesse mundo de descobertas tardias, experimentou a droga. "Eu era tão certinho que só percebi que viciava à primeira ressacada."
Só pararia 15 anos depois. Quando a fábrica fechou, propuseram-lhe um esquema parecido com o da mobilidade. Nunca houve outra colocação e por fim deram--lhe a escolher entre uma indemnização e um subsídio de desemprego. "Tive o discernimento de não pedir o dinheiro todo, sabia para onde ele ia", lembra.
Separou-se e a mulher levou o filho. Começou a falhar a pensão de alimentos e o tribunal ordenou que fosse descontada do subsídio. Sem conseguir largar a droga e sem trabalho, começou a andar na rua. "Um dia quis parar, mas entendi que podia fazê-lo a frio. Fui a um centro de desabituação e disseram-me que tinha de fazer a metadona. Disse não: não ia sair de uma para outra."
Encontrou apoio na Cais e agora está no abrigo nocturno da AMI quase há um ano. Fez um curso de cerâmica que dava rendimento para pagar um quarto, mas depois do estágio no Museu do Azulejo não conseguiu emprego. Entrou então num projecto destinado a recuperar a profissão de engraxador e hoje tem o seu posto de trabalho num café no centro de Lisboa. Todos os dias sai com a esperança de descolar, de o rendimento ser o suficiente para deixar o abrigo e voltar a ter um quarto sem que tudo se desmorone de repente, um medo que fica. "Num momento a pessoa tem a família e depois aparece a droga. Percebi a rapidez com que caímos. Eu tinha 30 anos, já não era um miúdo. No dia do funeral da minha mãe estava a ser julgado por roubo. Estava a ressacar e não podia ir assim para o funeral. Lembrei-me de roubar uma mala para comprar droga. Nunca o tinha feito. Tinha tanto jeito que me caíram cinco polícias em cima. A família nunca me perdoou e não o peço. Estou a pagar pelos meus erros."
O depois de José Moura, natural de Cabo Verde, mas com nacionalidade portuguesa desde a juventude, foi o desemprego. Foi manobrador de gruas durante 20 anos. Depois as empreitadas começaram a ser cada vez menos. As últimas grandes obras foram as torres de Sete Rios e um prédio na Lapa. Há um ano o serviço começou a ser tão precário que deixou de pagar a prestação da casa. O banco ficou com ela. Sem família que o possa ajudar, ficou primeiro na rua, depois nos bancos do aeroporto e por fim encontrou vaga no abrigo da AMI.
"Há sempre um princípio que nos leva à rua", resume Pedro, 33 anos. É daqueles que já estiveram em associações, já esteve em albergues nocturnos, já esteve simplesmente na rua. Vende na Feira da Ladra. Quando tem dinheiro fica numa pensão. Quando não tem, fica no aeroporto, onde o encontramos a pedir uma ceia à carrinha da Comunidade Vida e Paz. Não entra em estatística nenhuma. "O meu princípio foi quando me separei. Mas antes comecei a ir para a rua procurar o que não tinha em casa." Depois apareceu o álcool e a droga. Os factores misturam-se, as histórias enrolam-se. "Isto é um mundo clandestino. Nas associações é-se muitas vezes escravo. Dão-nos cama e comida, mas fazem de nós motoristas o dia todo e os presidentes aparecem com carrões. Numa, no Norte, até me proibiam de procurar trabalho. Alguns ficam com os subsídios e as reformas, ninguém controla nada. Nalguns albergues somos tratados como animais."
No aeroporto, melhor que abrigos ou ficar na rua, diz Pedro, os seguranças têm dias. "Às vezes metem-nos na rua ou implicam. Estão fartos de me ver e outro dia perguntaram-me se ia viajar e o que é que tinha na mala. Eram livros para vender, disse-lhe que se quisesse fazíamos já ali negócio. E viajar, se calhar um dia vou. Posso ganhar a lotaria."
Milho aos pombos Dificuldades económicas, desamores, acidentes, droga, alcoolismo, doenças mentais. Nas conversas de rua há um fio condutor que torna as palavras de há umas semanas da vereadora Helena Roseta, na melhor das leituras utópicas e na pior redutoras. Helena Roseta descreveu as equipas de voluntários que distribuem refeições na rua como uma resposta a lembrar quem dá "comida aos pombos", defendendo a distribuição em locais onde quem precisa possa comer sentado e a criação de um hotel social, uma vez que a câmara não consegue responder a todos os pedidos de habitação.
Para quem conduz as carrinhas que distribuem refeições, as palavras de Roseta valem o que valem. Só a Comunidade Vida e Paz e o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) distribuem mil refeições todas as noites, 520 cada uma. "Não distribuir comida na rua é um bom princípio se houver condições para isso. Mas haverá sempre pessoas que não irão aos espaços da câmara. Se quisermos que comam temos de continuar a ir ter com eles", diz Jorge Correia, presidente da CASA, que acredita ainda assim que tem havido um esforço de articulação no terreno, liderado por Roseta, como nunca existiu nesta área. Pedro Sousa, director do abrigo nocturno da AMI, também acredita que será difícil resolver a realidade dos sem-abrigo com medidas como as propostas pela vereadora, mas vê lacunas. O abrigo da AMI, por exemplo, tem 26 vagas, o que contrasta com outros com mais de 100 onde os relatos que lhe chegam são de falta de condições. Ali há uma resposta personalizada, um encaminhamento com vista à reintegração e não apenas o tecto por uma noite, estruturas que entende que ainda fazem falta. Depois há o desafio das regras, que muitos não querem aceitar. "São pessoas livres, adultas, mas qualquer casa precisa de regras. É uma fronteira difícil."
A Igreja de Arroios é um ponto de distribuição de refeições onde se cruzam carrinhas de diferentes associações, outra realidade que Roseta contesta, defendendo que não faz sentido um sem-abrigo ser visitado por cinco equipas numa mesma noite. A partir das 20h há mais de uma centena de pessoas à espera junto às escadas da igreja. Algumas vão dormir ali, outras mais acima, na Travessa das Freiras. Mas a maioria dos que vêm buscar sacos de comida, roupa ou cobertores às carrinhas da CASA e Comunidade Vida e Paz, que vemos cruzarem-se como diz Roseta, não dorme na rua. Para quem está no terreno, esta procura por quem tem casa, mais ou menos precária, é uma das realidades em que se nota maior aumento de pedidos e justifica o trabalho intenso no terreno.
Vemos Marina duas noites seguidas. Com 27 anos, vive com o marido, a irmã, o cunhado e a mãe numa casa que diz estar a cair, com a casa de banho inoperacional. Conheceu o marido na rua, grávida de outro namorado. Chegaram a viver numa casa abandonada. A Segurança Social tirou-lhe a filha com poucos dias, faz três anos, e continua sem trabalho. Lá em casa só a irmã trabalha, faz limpezas numas escadas. Comem o que levam dali, conta. Levam mais de um saco, mas porque guardam para as refeições do dia seguinte. É jantar, pequeno-almoço e almoço. Tília, 57 anos, vive num quarto sem janela. Tosse muito enquanto a vemos ir às carrinhas também duas noites seguidas. "Tenho um quarto, mas fumam dentro de casa, fico atacada. Quase prefiro estar na rua." Quando recebe a pensão de invalidez paga a renda. Sobram 50 euros para remédios e comida. Não chega, por isso agarra o que consegue.
O que faz falta Para quem está no terreno, as lacunas são consensuais: falta alojamento, emprego e respostas nos cuidados de saúde, sobretudo para doentes mentais. Se há a sensação que a crise fez disparar o número de pessoas na rua, mais em 2012 do que este ano, parecem dominar as situações desencadeadas por desemprego de longa duração, de portugueses mas também de imigrantes sem apoio familiar. Isabel Oliveira, da Comunidade Vida e Paz, assinala também o aumento de perturbações psicológicas. "Encontramos pessoas jovens que estavam estruturadas mas perderam o emprego e deixaram de conseguir pagar a medicação." Na voltas de distribuição de comida isso é evidente. Numa paragem de autocarro, um homem recebe o saco sem reagir. Vêem-no ali há alguns meses. "Uma vez disse-me que tem 12 anos. Não temos para onde sinalizá-lo", conta Ana Bela, voluntária da volta.
Desde 2009 existe uma Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, que levou à formalização de núcleos de resposta na maioria dos concelhos. Ainda assim, o reconhecimento desta área não tornou os balanços mais periódicos: o i pediu informação sobre casos sinalizados ao Instituto de Segurança Social, que diz que só tem dados sobre o ano de 2009, quando foram sinalizados 2133 sem-abrigo em Portugal. O Instituto sublinha ainda que tem estabelecido acordos de cooperação com instituições privadas de solidariedade social para centros de alojamento temporários e que em Maio havia 31 CAT com capacidade para cerca de 950 utentes.
Só Lisboa, pelos dados avançados pela câmara, esgota estas estatísticas. Mas há mais. Em Setúbal, revelou ao i a autarquia, foram sinalizados 91 sem-abrigo no levantamento de 2011 e em 2012 mais 71 casos. Em Faro, o primeiro levantamento sinalizou 68 processos e em 2012 somaram-se mais 38. No Seixal, indicou a associação local Criar-T, foram sinalizados 65 casos em 2011. Ainda não têm dados de 2012, mas sentem que há mais casos. Já a AMI sente que o aumento de sem-abrigo aconteceu sobretudo em 2010 e 2011 e nos últimos meses têm sinalizados menos casos. Em 2012 apoiaram 1683 pessoas, menos 132 que no ano anterior. No primeiro trimestre deste ano deram apoio a 825 sem-abrigo.
Para Fernando Marques, da Criar-T, o problema já não é de falta de plano, mas de compromisso. "Apesar de ser um documento bem elaborado, a estratégia nacional ainda não tem legislação aprovada. Até ao momento não recebeu um cêntimo. O que acontece no terreno tem a ver com mobilização das instituições, o que se tem mostrado insuficiente quando o objectivo do programa é que ninguém fique na rua mais de 24 horas."
Mas e se o objectivo for demasiado ambicioso? "Acho que devemos aspirar a isso. Há pessoas que dizem que estão na rua porque querem mas é uma atitude defensiva. Se calhar não encontrámos ainda a resposta certa para elas", diz Isabel Oliveira. Tem números que a fazem acreditar. Em 25 anos de história, a Comunidade Vida e Paz ajudou a reintegrar 1700 sem-abrigo.
Reacção defensiva ou não, parece impossível pensar no relento zero. Manuel, 61 anos, dorme no Rossio há duas semanas e, confessa, porque quer. Tem casa em Belas. A história começa lá atrás: o pai bebia, ele bebe, o filho mais velho também. Chateou-se com a mulher, porque toma o partido do filho, e saiu de casa para espairecer sem dinheiro ou comida. Acorda, vai lavar-se às casas de banho públicas e fica a pensar e a ler. Tira um livrinho do bolso. O título é "Perdoa-me". À noite espera a comida das carrinhas. Da outra vez que isto aconteceu o filho foi buscá-lo passado um mês.
Há quem esteja fugido da polícia, conta Pedro e quem queira apenas viver à margem. "Às vezes até dava para ir para a pensão, mas vou gastar dinheiro para quê? É como ter de pagar impostos, prefiro andar na feira." José, 68 anos, dorme há mais de um ano numa carrinha estacionada à porta do mercado de Arroios. Lá dentro, cobertores, sacos, lixo, um cheiro agoniante que se entranha na roupa. "Já vivi numa casa aqui na rua, mas prefiro estar aqui", diz. Tem uma reforma que dava para pagar alojamento. Tem uma filha, netos que vê de vez em quando. Diz que é uma escolha. O cheque da reforma é enviado para uma tasca ali perto. Gasta-o em comida e bebida.
O abrigo na estação Entre tudo o que há a fazer, e nunca se resolverá de um dia para o outro, há imagens que se estranham. No acesso ao estacionamento subterrâneo da Gare do Oriente, num dia da semana, contam-se 40 pessoas enroladas em mantas e sacos-camas. Enchiam dois abrigos como o da AMI.
Como no aeroporto, haver tanta gente a dormir ali não é segredo para ninguém. Há regras e seguranças para as impor. Quem lá dorme guarda as coisas em carrinhos de supermercado, que a partir das 21h pode trazer para baixo. Às 6h têm de sair. Há uma ala de indianos, outra de romenos. Quem chega fica ao fundo ou onde há lugar. Esperam os sacos de comida para os esconder, se não de manhã desapareceram.
Gil, 54 anos, é dos poucos acordados perto da meia-noite e dos mais antigos. Dorme ali há nove anos. Como todos, tinha a vida dele até àquele depois. Era encarregado de uma firma de limpezas e fazia uns biscates por fora. Um dia, a limpar os vidros de um prédio num desses biscates, o cabo partiu e caiu do terceiro andar. O colega morreu e ele ficou com a perna atravancada. Como era por fora, não teve indemnização. Depois não voltou a trabalhar e deixou de conseguir pagar a renda da casa. Acabou na rua. "Habituamo-nos. Já estive bem e agora não tenho nada. Nunca se pode confiar muito, mas acabamos por ser uma família. Se aparece algum artista juntamo-nos e pomo-lo fora."
A noite é calma. Gil conta que só há duas alturas em que o cenário é diferente: o dia em que alguns recebem o rendimento social de inserção e o dia em que caem as reformas. "Pagam-se dívidas e alguns gastam em bebida. Começa em festa e acaba em confusão." É assim, são as voltas que a vida dá, diz. "Espero que nunca aconteça. Para aquilo que já vivi, se fosse para me matar já o tinha feito." Com 38 anos de serviço, espera os 55 anos que fará a 12 de Novembro para meter os papéis da reforma e sair da rua.
Aos 9 anos viu o melhor amigo morrer afogado, viu a mãe ser espancada e ficar em casa a aguentar - ainda lá está. Nunca mais falou com o pai, mas ela vai ligando. Deixou-se levar pela droga enquanto estava incluída no salário. Depois tornou--se difícil continuar a trabalhar daquela forma e quis parar de consumir. Começou uma desintoxicação numa comunidade terapêutica e parou antes do fim, a pensar que estava livre. Meses depois voltou ao mesmo. Há seis anos tentou uma segunda e ficou limpo. Acredita que é de vez, porque desce as ruas onde se injectam os velhos amigos e não se se sente tentado. Com mais baixos que altos, assume a depressão diagnosticada pelo médico. "Como é que podia ter acabado de outra forma?", remata. Instável, mas limpo, ainda arranjou trabalho. Pagava um quarto. Depois, outro depois, o serviço começou a falhar. Há cinco meses ficou na rua.
As histórias dos sem-abrigo que as aceitam contar são assim: cruas, rápidas, desarmantes. Perturbadoras por terem tantas vezes um rastilho antigo, casas onde faltaram os pais, onde faltou dinheiro. Onde sobejava álcool e violência. Ou simplesmente um azar. Há um antes e um depois que acaba na rua, seja a calçada, seja o caixote, a casa abandonada ou o albergue.
Luís conseguiu vaga no abrigo nocturno da AMI, na Graça, um dos seis espaços na cidade que faz que metade dos 2 mil sem-abrigo sinalizados, números revelados pela vereadora Helena Roseta, não durmam na rua. Só por estes números, divulgados há duas semanas, percebe-se que é normal não se saber ao certo quantos sem-abrigo existem em Portugal, porque as estatísticas estão longe de espelhar a realidade. No último censo, o Instituto Nacional de Estatística contou 696 pessoas sem tecto. Só em Lisboa, pelos dados da autarquia, há o triplo. O INE só contabiliza quem está na rua. Fica de fora quem dorme em albergues, como o abrigo da AMI, que abre ao fim do dia e fecha pelas 9h. Fica de fora quem não está à vista.
Eles contam Não gostam de falar, mas quando o fazem contam-se melhor que qualquer estatística. Vítor, 58 anos, casou-se com 22 anos. Jogador profissional de basquetebol, trabalhava na fábrica militar do Braço de Prata, a fazer munições. Perto dos 30, chegou ao fim a carreira no basquete e teve o seu depois. Apesar de ter casado jovem, e de ter um filho pequeno, o tempo livre e as amizades deram-lhe a conhecer a noite e o álcool. Um dia, nesse mundo de descobertas tardias, experimentou a droga. "Eu era tão certinho que só percebi que viciava à primeira ressacada."
Só pararia 15 anos depois. Quando a fábrica fechou, propuseram-lhe um esquema parecido com o da mobilidade. Nunca houve outra colocação e por fim deram--lhe a escolher entre uma indemnização e um subsídio de desemprego. "Tive o discernimento de não pedir o dinheiro todo, sabia para onde ele ia", lembra.
Separou-se e a mulher levou o filho. Começou a falhar a pensão de alimentos e o tribunal ordenou que fosse descontada do subsídio. Sem conseguir largar a droga e sem trabalho, começou a andar na rua. "Um dia quis parar, mas entendi que podia fazê-lo a frio. Fui a um centro de desabituação e disseram-me que tinha de fazer a metadona. Disse não: não ia sair de uma para outra."
Encontrou apoio na Cais e agora está no abrigo nocturno da AMI quase há um ano. Fez um curso de cerâmica que dava rendimento para pagar um quarto, mas depois do estágio no Museu do Azulejo não conseguiu emprego. Entrou então num projecto destinado a recuperar a profissão de engraxador e hoje tem o seu posto de trabalho num café no centro de Lisboa. Todos os dias sai com a esperança de descolar, de o rendimento ser o suficiente para deixar o abrigo e voltar a ter um quarto sem que tudo se desmorone de repente, um medo que fica. "Num momento a pessoa tem a família e depois aparece a droga. Percebi a rapidez com que caímos. Eu tinha 30 anos, já não era um miúdo. No dia do funeral da minha mãe estava a ser julgado por roubo. Estava a ressacar e não podia ir assim para o funeral. Lembrei-me de roubar uma mala para comprar droga. Nunca o tinha feito. Tinha tanto jeito que me caíram cinco polícias em cima. A família nunca me perdoou e não o peço. Estou a pagar pelos meus erros."
O depois de José Moura, natural de Cabo Verde, mas com nacionalidade portuguesa desde a juventude, foi o desemprego. Foi manobrador de gruas durante 20 anos. Depois as empreitadas começaram a ser cada vez menos. As últimas grandes obras foram as torres de Sete Rios e um prédio na Lapa. Há um ano o serviço começou a ser tão precário que deixou de pagar a prestação da casa. O banco ficou com ela. Sem família que o possa ajudar, ficou primeiro na rua, depois nos bancos do aeroporto e por fim encontrou vaga no abrigo da AMI.
"Há sempre um princípio que nos leva à rua", resume Pedro, 33 anos. É daqueles que já estiveram em associações, já esteve em albergues nocturnos, já esteve simplesmente na rua. Vende na Feira da Ladra. Quando tem dinheiro fica numa pensão. Quando não tem, fica no aeroporto, onde o encontramos a pedir uma ceia à carrinha da Comunidade Vida e Paz. Não entra em estatística nenhuma. "O meu princípio foi quando me separei. Mas antes comecei a ir para a rua procurar o que não tinha em casa." Depois apareceu o álcool e a droga. Os factores misturam-se, as histórias enrolam-se. "Isto é um mundo clandestino. Nas associações é-se muitas vezes escravo. Dão-nos cama e comida, mas fazem de nós motoristas o dia todo e os presidentes aparecem com carrões. Numa, no Norte, até me proibiam de procurar trabalho. Alguns ficam com os subsídios e as reformas, ninguém controla nada. Nalguns albergues somos tratados como animais."
No aeroporto, melhor que abrigos ou ficar na rua, diz Pedro, os seguranças têm dias. "Às vezes metem-nos na rua ou implicam. Estão fartos de me ver e outro dia perguntaram-me se ia viajar e o que é que tinha na mala. Eram livros para vender, disse-lhe que se quisesse fazíamos já ali negócio. E viajar, se calhar um dia vou. Posso ganhar a lotaria."
Milho aos pombos Dificuldades económicas, desamores, acidentes, droga, alcoolismo, doenças mentais. Nas conversas de rua há um fio condutor que torna as palavras de há umas semanas da vereadora Helena Roseta, na melhor das leituras utópicas e na pior redutoras. Helena Roseta descreveu as equipas de voluntários que distribuem refeições na rua como uma resposta a lembrar quem dá "comida aos pombos", defendendo a distribuição em locais onde quem precisa possa comer sentado e a criação de um hotel social, uma vez que a câmara não consegue responder a todos os pedidos de habitação.
Para quem conduz as carrinhas que distribuem refeições, as palavras de Roseta valem o que valem. Só a Comunidade Vida e Paz e o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) distribuem mil refeições todas as noites, 520 cada uma. "Não distribuir comida na rua é um bom princípio se houver condições para isso. Mas haverá sempre pessoas que não irão aos espaços da câmara. Se quisermos que comam temos de continuar a ir ter com eles", diz Jorge Correia, presidente da CASA, que acredita ainda assim que tem havido um esforço de articulação no terreno, liderado por Roseta, como nunca existiu nesta área. Pedro Sousa, director do abrigo nocturno da AMI, também acredita que será difícil resolver a realidade dos sem-abrigo com medidas como as propostas pela vereadora, mas vê lacunas. O abrigo da AMI, por exemplo, tem 26 vagas, o que contrasta com outros com mais de 100 onde os relatos que lhe chegam são de falta de condições. Ali há uma resposta personalizada, um encaminhamento com vista à reintegração e não apenas o tecto por uma noite, estruturas que entende que ainda fazem falta. Depois há o desafio das regras, que muitos não querem aceitar. "São pessoas livres, adultas, mas qualquer casa precisa de regras. É uma fronteira difícil."
A Igreja de Arroios é um ponto de distribuição de refeições onde se cruzam carrinhas de diferentes associações, outra realidade que Roseta contesta, defendendo que não faz sentido um sem-abrigo ser visitado por cinco equipas numa mesma noite. A partir das 20h há mais de uma centena de pessoas à espera junto às escadas da igreja. Algumas vão dormir ali, outras mais acima, na Travessa das Freiras. Mas a maioria dos que vêm buscar sacos de comida, roupa ou cobertores às carrinhas da CASA e Comunidade Vida e Paz, que vemos cruzarem-se como diz Roseta, não dorme na rua. Para quem está no terreno, esta procura por quem tem casa, mais ou menos precária, é uma das realidades em que se nota maior aumento de pedidos e justifica o trabalho intenso no terreno.
Vemos Marina duas noites seguidas. Com 27 anos, vive com o marido, a irmã, o cunhado e a mãe numa casa que diz estar a cair, com a casa de banho inoperacional. Conheceu o marido na rua, grávida de outro namorado. Chegaram a viver numa casa abandonada. A Segurança Social tirou-lhe a filha com poucos dias, faz três anos, e continua sem trabalho. Lá em casa só a irmã trabalha, faz limpezas numas escadas. Comem o que levam dali, conta. Levam mais de um saco, mas porque guardam para as refeições do dia seguinte. É jantar, pequeno-almoço e almoço. Tília, 57 anos, vive num quarto sem janela. Tosse muito enquanto a vemos ir às carrinhas também duas noites seguidas. "Tenho um quarto, mas fumam dentro de casa, fico atacada. Quase prefiro estar na rua." Quando recebe a pensão de invalidez paga a renda. Sobram 50 euros para remédios e comida. Não chega, por isso agarra o que consegue.
O que faz falta Para quem está no terreno, as lacunas são consensuais: falta alojamento, emprego e respostas nos cuidados de saúde, sobretudo para doentes mentais. Se há a sensação que a crise fez disparar o número de pessoas na rua, mais em 2012 do que este ano, parecem dominar as situações desencadeadas por desemprego de longa duração, de portugueses mas também de imigrantes sem apoio familiar. Isabel Oliveira, da Comunidade Vida e Paz, assinala também o aumento de perturbações psicológicas. "Encontramos pessoas jovens que estavam estruturadas mas perderam o emprego e deixaram de conseguir pagar a medicação." Na voltas de distribuição de comida isso é evidente. Numa paragem de autocarro, um homem recebe o saco sem reagir. Vêem-no ali há alguns meses. "Uma vez disse-me que tem 12 anos. Não temos para onde sinalizá-lo", conta Ana Bela, voluntária da volta.
Desde 2009 existe uma Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, que levou à formalização de núcleos de resposta na maioria dos concelhos. Ainda assim, o reconhecimento desta área não tornou os balanços mais periódicos: o i pediu informação sobre casos sinalizados ao Instituto de Segurança Social, que diz que só tem dados sobre o ano de 2009, quando foram sinalizados 2133 sem-abrigo em Portugal. O Instituto sublinha ainda que tem estabelecido acordos de cooperação com instituições privadas de solidariedade social para centros de alojamento temporários e que em Maio havia 31 CAT com capacidade para cerca de 950 utentes.
Só Lisboa, pelos dados avançados pela câmara, esgota estas estatísticas. Mas há mais. Em Setúbal, revelou ao i a autarquia, foram sinalizados 91 sem-abrigo no levantamento de 2011 e em 2012 mais 71 casos. Em Faro, o primeiro levantamento sinalizou 68 processos e em 2012 somaram-se mais 38. No Seixal, indicou a associação local Criar-T, foram sinalizados 65 casos em 2011. Ainda não têm dados de 2012, mas sentem que há mais casos. Já a AMI sente que o aumento de sem-abrigo aconteceu sobretudo em 2010 e 2011 e nos últimos meses têm sinalizados menos casos. Em 2012 apoiaram 1683 pessoas, menos 132 que no ano anterior. No primeiro trimestre deste ano deram apoio a 825 sem-abrigo.
Para Fernando Marques, da Criar-T, o problema já não é de falta de plano, mas de compromisso. "Apesar de ser um documento bem elaborado, a estratégia nacional ainda não tem legislação aprovada. Até ao momento não recebeu um cêntimo. O que acontece no terreno tem a ver com mobilização das instituições, o que se tem mostrado insuficiente quando o objectivo do programa é que ninguém fique na rua mais de 24 horas."
Mas e se o objectivo for demasiado ambicioso? "Acho que devemos aspirar a isso. Há pessoas que dizem que estão na rua porque querem mas é uma atitude defensiva. Se calhar não encontrámos ainda a resposta certa para elas", diz Isabel Oliveira. Tem números que a fazem acreditar. Em 25 anos de história, a Comunidade Vida e Paz ajudou a reintegrar 1700 sem-abrigo.
Reacção defensiva ou não, parece impossível pensar no relento zero. Manuel, 61 anos, dorme no Rossio há duas semanas e, confessa, porque quer. Tem casa em Belas. A história começa lá atrás: o pai bebia, ele bebe, o filho mais velho também. Chateou-se com a mulher, porque toma o partido do filho, e saiu de casa para espairecer sem dinheiro ou comida. Acorda, vai lavar-se às casas de banho públicas e fica a pensar e a ler. Tira um livrinho do bolso. O título é "Perdoa-me". À noite espera a comida das carrinhas. Da outra vez que isto aconteceu o filho foi buscá-lo passado um mês.
Há quem esteja fugido da polícia, conta Pedro e quem queira apenas viver à margem. "Às vezes até dava para ir para a pensão, mas vou gastar dinheiro para quê? É como ter de pagar impostos, prefiro andar na feira." José, 68 anos, dorme há mais de um ano numa carrinha estacionada à porta do mercado de Arroios. Lá dentro, cobertores, sacos, lixo, um cheiro agoniante que se entranha na roupa. "Já vivi numa casa aqui na rua, mas prefiro estar aqui", diz. Tem uma reforma que dava para pagar alojamento. Tem uma filha, netos que vê de vez em quando. Diz que é uma escolha. O cheque da reforma é enviado para uma tasca ali perto. Gasta-o em comida e bebida.
O abrigo na estação Entre tudo o que há a fazer, e nunca se resolverá de um dia para o outro, há imagens que se estranham. No acesso ao estacionamento subterrâneo da Gare do Oriente, num dia da semana, contam-se 40 pessoas enroladas em mantas e sacos-camas. Enchiam dois abrigos como o da AMI.
Como no aeroporto, haver tanta gente a dormir ali não é segredo para ninguém. Há regras e seguranças para as impor. Quem lá dorme guarda as coisas em carrinhos de supermercado, que a partir das 21h pode trazer para baixo. Às 6h têm de sair. Há uma ala de indianos, outra de romenos. Quem chega fica ao fundo ou onde há lugar. Esperam os sacos de comida para os esconder, se não de manhã desapareceram.
Gil, 54 anos, é dos poucos acordados perto da meia-noite e dos mais antigos. Dorme ali há nove anos. Como todos, tinha a vida dele até àquele depois. Era encarregado de uma firma de limpezas e fazia uns biscates por fora. Um dia, a limpar os vidros de um prédio num desses biscates, o cabo partiu e caiu do terceiro andar. O colega morreu e ele ficou com a perna atravancada. Como era por fora, não teve indemnização. Depois não voltou a trabalhar e deixou de conseguir pagar a renda da casa. Acabou na rua. "Habituamo-nos. Já estive bem e agora não tenho nada. Nunca se pode confiar muito, mas acabamos por ser uma família. Se aparece algum artista juntamo-nos e pomo-lo fora."
A noite é calma. Gil conta que só há duas alturas em que o cenário é diferente: o dia em que alguns recebem o rendimento social de inserção e o dia em que caem as reformas. "Pagam-se dívidas e alguns gastam em bebida. Começa em festa e acaba em confusão." É assim, são as voltas que a vida dá, diz. "Espero que nunca aconteça. Para aquilo que já vivi, se fosse para me matar já o tinha feito." Com 38 anos de serviço, espera os 55 anos que fará a 12 de Novembro para meter os papéis da reforma e sair da rua.
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