Sociedade
Famílias a viver na rua: Amor sem uma cabana
A realidade dos sem-abrigo está a mudar e há cada vez mais famílias inteiras a viver na rua
Clara e Paulo vivem com os três filhos numa carrinha velha, Carla e Cândido num terreno baldio
Clara e Paulo vivem com os três filhos numa carrinha velha, Carla e Cândido num terreno baldio
Paulo e Clara vivem há oito meses numa carrinha Fiat emprestada pelo compadre. O espaço é dividido com os três filhos
Foto José Pedro Tomaz
Paulo e Clara vivem há oito meses numa carrinha Fiat emprestada pelo compadre. O espaço é dividido com os três filhos.Uma escavadora da Câmara Municipal de Lisboa destrói um barracão e arrasta uma família para a rua. A Patrícia, de olhos doces e redondos, tão pequenina nos seus dois anos. O Zé, que, aos seis anos, precisa de um sítio onde possa desenhar as primeiras letras. E o Mário, de nove, que tem problemas mentais por causa da "porrada que a avó lhe deu" com uma vara e um chinelo quando era bebé. "Éramos felizes, uma família, já não somos", lamenta Clara Antunes, a quem falta o apelido Manteiga porque "não há dinheiro para o casamento com o Paulo". Não fosse o compadre que mora numa esquina do Campo Grande, há oito meses que dormiam na rua. Felizmente, estava ali parada a sua velhinha carrinha Fiat, à espera. Do espaço com três metros quadrados fez-se um lar para cinco.
"Continuamos a almoçar e a jantar sempre juntos", orgulha-se Paulo, apontando para a carrinha que, de porta aberta, oferece um retrato dos dias desta família: um fogão, fotografias antigas, um colchão velho, alguns cobertores, brinquedos e um papel com a declaração "Amo-te, pai". Mas não é a mesma coisa. "Os meus filhos não são os mesmos, estão revoltados." Viviam no barracão há três anos, quatro anos depois de o casal se ter cruzado num café do Campo Grande. Ela pediu um café, ele serviu - a cena repetiu-se durante meses. "Tens namorado?", perguntou Paulo, enfim, um dia. "Não, não tenho". "Então, queres namorar comigo?" E a bomba explodiu: "Quero, se aceitares o meu filho." Clara já era mãe e Paulo não sabia.
A revelação foi um gatilho. Clara nasceu numa família de oito irmãos, estudou até aos 16 anos, mas ainda estava na quarta classe. Desistiu quando "a professora saiu da sala para atender um telefone" e lhe fizeram "coisas feias só porque era rapariga e gostava de usar mini-saias". O percurso de Paulo era semelhante: estudou até aos 18 anos, mas quando o pai e o irmão mais velho morreram com cirrose foi trabalhar para ajudar os oito irmãos. As duas existências de fúrias e naufrágios cruzaram-se e, um ano depois, nasceu o Zé.
Nenhum trabalha - recolhem cobre, latão e alumínio para vender no ferro-velho - mas recebem, tudo somado, 921,50 euros mensais do Estado. Garantem que não é suficiente. Como não pode faltar comida e escola, a casa ficou esquecida. Cada um fuma um maço e meio de tabaco por dia e Paulo já bebeu em excesso. Quando regressava ao barracão, a mulher calava-se, ele lançava--lhe um olhar raivoso, começava a insultá-la, as crianças aos berros e ele aos pontapés. Depois arrependia-se, e as zangas terminavam com um artifício de reconciliação, a promessa de deixar de beber e ser um homem de horas certas. "Isso acabou, só bebo um copo de vinho às refeições", garante com os braços da Patrícia enrolados nas suas pernas. "Só consegue adormecer agarrada a mim." A família candidatou-se a uma casa em 2006, em Julho deste ano chegou a resposta. Positiva. Estão à espera.
Casal sem filhos A noite transforma os sem-abrigo de um terreno baldio dos Anjos, em Lisboa, em figuras absurdas. Um homem com corpo de plasticina ginga em cima de duas muletas e um pelotão de ratazanas esfomeadas, de longas caudas e olhos amarelos, devora o milho atirado ao ar por uma prostituta velha de gargalhada ácida. É lá que Cândido Vieira, 35 anos, vive com Carla Ferreira. Cândido tem no corpo e no discurso um jeito que mistura o rigor militar com a vida de mulheres e ócio que reivindica. Mas deixou-se disso pela Carla. Declara-se apaixonado pela açoriana de 31 anos que chegou ao continente há menos de dois.
"Conhecemo-nos há um ano. Ela começou a entrar comigo e eu disse 'não sou a pessoa indicada para brincares', fiz-lhe uma cara...", começa Vieira, para Carla terminar: "Foi numa sexta-feira. Ele pegou em mim, beijou-me e fomos viver juntos logo depois." O encontro foi no Centro de Acolhimento de Xabregas, viveram em Coimbra alguns meses e chegaram aqui. São uns "privilegiados": no extremo do terreno que ocuparam há os restos de um armazém que oferece tecto e um muro que protege das ratazanas. É aí que penduram um cobertor cor-de-rosa para fazer deste buraco uma casa, onde guardam o sofá que serve de cama, o caixote que guarda roupa dobrada e o armário onde repousa um fogão, tachos e alguns temperos. "Ele cozinha muito bem, eu não sei fazer nada. Hoje o jantar estava de chorar por mais", elogia Carla. Cândido sorri e sem pressa descreve a ementa: "Foi um arrozinho branco a acompanhar uma mistura de tomate, alho francês, pimento, chocos e salmão com caril."
Este casal é parte integrante da nova realidade dos sem-abrigo em Lisboa, que se está a alterar com o aumento do número de famílias inteiras na rua, explica Ana Corte do Grupo Técnico da Rede Distrital de Lisboa. "Há um novo sem-abrigo, uma realidade diversa, como famílias na rua, que tende a aumentar e a agravar-se." Para a responsável, "combater esta nova realidade é o principal objectivo deste plano [Plano da Cidade para a Pessoa Sem Abrigo]". Quando à noite se deitam, Paulo abraça a namorada e adormecem. Não se lembram do que queriam ser quando eram crianças, mas todas as noites Cândido sonha com um emprego. "Gostava de ser cozinheiro."
Imigrantes Todos os domingos chegam, discretas, ao Parque das Nações carrinhas de vidros fumados, sem qualquer inscrição. Vêm cheias de imigrantes de Leste que pagam 140 euros pela viagem. Muitos vêm ter a este descampado no Areeiro, atrás dos antigos Cinemas Alfa. São 55 pessoas, quatro da Bulgária, os restantes da Roménia. Várias famílias de pele morena e olhos claros e brilhantes, em que não há velhos nem crianças. Os primeiros ficam a tomar conta dos segundos no país de origem; os outros correm atrás da promessa de um trabalho na apanha da azeitona que se desfaz à chegada.
É Decir, 14 anos, que conta tudo isto. Um adolescente romeno de voz grossa e cabeça rapada que parece não reparar que o fato de porta-voz lhe fica demasiado largo. "Já vim quatro vezes, fico uns meses e depois volto. Lá é muito pior." Decir fala de fome e falam também a Mariscka, o Mariano e a Maria. Fome, com todas as letras, é das poucas palavras que pronunciam em português. "Estamos cá a pedir, todos, mas alguns homens arranjam trabalho no mercado." Um dia a carregar caixotes de fruta no mercado vale cinco euros.
Não fosse a roupa colorida que usam e a comunidade seria imperceptível nesta paisagem cinzenta de estaleiro, onde não existe um único abrigo. Um jovem de pés tortos deita-se no chão e encosta-se a uma parede, para demonstrar como se protegem em dias de tempestade. Todos se riem e isso é o mais espantoso: a passividade. Não fogem da chuva porque não têm para onde ir. Como se o fim do caminho fosse ali.
Publicado em 21 de Setembro de 2009
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